fb-embed

Sociedade

3 min de leitura

Comorbidade moral e ética

Após muitas décadas, continuamos a ser o País de Macunaímas e Gersons: temos uma elite que grita contra a corrupção e a favor do Estado mínimo, mas que procura, todos os dias, levar vantagem em tudo

Colunista Neivia Justa

Neivia Justa

11 de Junho

Compartilhar:
Artigo Comorbidade moral e ética

Onde começa a corrupção? Em nós. Já escrevi em outros artigos que integridade se aprende em casa e que a mentira nossa de cada dia é uma realidade.

Como podemos exigir comportamentos que não praticamos? Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, criado por Mário de Andrade em seu livro de 1928, segue firme e forte no nosso inconsciente coletivo.

Assim como Gerson, o personagem encarnado pelo ídolo da Copa de 1970, na campanha do cigarro Vila Rica: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.

Infelizmente, muita gente da nossa elite, bem como diversos dirigentes públicos e privados da nação, ainda orienta sua conduta pelo princípio de obter vantagens de forma indiscriminada, sem se importar com questões éticas ou morais, a famosa “lei de Gerson”.

Embora tenha mostrado nosso caráter solidário, a pandemia também escancarou traços da nossa comorbidade moral e ética: em junho de 2020, por exemplo, 3,9 milhões de brasileiros e brasileiras de alta renda, solicitaram e receberam o auxílio emergencial, segundo dados do Instituto Locomotiva.

Um terço da nossa elite acha que tem esse direito porque considera que o dinheiro público não é de ninguém. Culpa? Crise de consciência? Nenhuma. Essas pessoas não veem nada de errado nesse comportamento, tanto é assim que muitos comemoraram o acesso ao benefício pelas redes sociais, divulgando churrascos regados a cerveja, financiados pelo auxílio emergencial. Tiraram o recurso de quem realmente precisava, mas dizem que são a favor do Estado mínimo e contra a corrupção. Sério?

O clássico fura-fila

Agora, em 2021, com a chegada, a conta-gotas das vacinas no Brasil, e o estabelecimento de uma lista de comorbidades – condições ou doenças pré-existentes, que possibilitam o acesso prioritário à imunização contra a Covid –, pessoas sem qualquer comorbidade estão tentando furar a fila nos quatro cantos do país.

Laudos médicos falsos passaram a ser vendidos nos centros das grandes capitais e nas redes sociais, por preços que variam entre R$ 20 e R$ 250. A emissão de atestados falsos para pessoas saudáveis é alvo de investigações em vários estados brasileiros.

Vale lembrar que, para ter direito à vacina por comorbidade, a pessoa deve estar cadastrada no SUS ou apresentar um exame, receita ou laudo médico. A lista deixa claro que a prioridade é para os casos mais graves de cada doença.

Nessa onda de “neo-comórbidos”, há vários tipos de oportunistas: jovens que alegam ter pressão alta e diabetes, homens que se cadastram como grávidas, e gente se vangloriando sem o menor pudor, em mensagens de WhatsApp, por ter furado a fila e recebido a vacina, mesmo não tendo nenhuma comorbidade.

Em suma, gente que não vê problema algum porque “é obrigação do estado, do poder público, fornecer a vacina”. Gente que não sente nenhum tipo de constrangimento em ser vacinada com uma declaração de doença inexistente.

Num País que ainda não tem vacina para todo mundo, quando uma pessoa fura a fila com um laudo falso, ela está roubando a vacina de outra pessoa que está muito mais vulnerável. E ninguém parece se importar.

Lima Barreto (1881-1922) já dizia que o “Brasil não tem povo, tem público”. Um século depois, seguimos demonstrando a mesma apatia em relação à nossa própria história e indiferentes, cada um de nós, com o destino de todos.

Sou uma otimista incorrigível e mantenho a esperança de que sairemos dessa pandemia com a consciência coletiva necessária para mudar esse misto de anestesia e a alienação que parece estar entranhada em nós. Só assim conseguiremos transformar essa letargia em ação.

No entanto, sempre que me deparo com os Macunaímas e os Gersons de plantão, do Oiapoque ao Chuí, sinto minha esperança escorrendo pelas mãos.

Gostou do artigo da Neivia Justa? Saiba mais sobre questões que envolvem a cultura e a sociedade brasileira assinando gratuitamente nossas newsletters e ouça nossos podcasts em sua plataforma de streaming favorita.

Compartilhar:

Autoria

Colunista Neivia Justa

Neivia Justa

Fundadora da #JustaCausa, do programa #lídercomneivia e dos movimentos #ondeestãoasmulheres e #aquiestãoasmulheres

Artigos relacionados

Imagem de capa Infelizmente, ainda precisamos falar sobre assédio sexual nas empresas

Sociedade

06 Julho | 2023

Infelizmente, ainda precisamos falar sobre assédio sexual nas empresas

A formação e educação das pessoas deve vir de casa, porém não exclui a parcela de responsabilidade do setor empresarial sobre o tema. As organizações devem ficar atentas e adotar posturas importantes diante de uma queixa, contribuindo para evitar e combater o assédio sexual

Viviane Ribeiro Gago

8 min de leitura

Imagem de capa Quem liga para os “nem-nem”?

Liderança

18 Janeiro | 2022

Quem liga para os “nem-nem”?

Com milhões de jovens que não estudam e nem trabalham, os nem-nem, lideranças e empresas precisam criar oportunidades, experiências e estímulos para uma geração paralisada e sem perspectiva de futuro próximo

Elisa Rosenthal

2 min de leitura

Imagem de capa Você combate a violência contra as mulheres e meninas?

Desenvolvimento pessoal

03 Janeiro | 2022

Você combate a violência contra as mulheres e meninas?

Dados refletem uma perturbadora realidade, desde casos de assédio, estupro e casamento infantil; homens têm papel decisivo para alterar essa realidade e as empresas precisam encarar esses fatos, indo além de uma estampa bonita de S do ESG

Neivia Justa

5 min de leitura

Imagem de capa O antiladrão de profissões

Sociedade

11 Novembro | 2021

O antiladrão de profissões

Apesar das muitas afirmações em contrário, o mundo tem mais opções e oportunidades do que a supersimplificação dos fatos permite enxergar

Joseph Teperman

3 min de leitura

Imagem de capa Educação precisa focar nas necessidades do mercado em transformação

Sociedade

16 Setembro | 2021

Educação precisa focar nas necessidades do mercado em transformação

Com o modelo de educação formal posto em dúvida, as empresas e escolas corporativas estão prontas para viver as mudanças provocadas pelo ensino digital?

Luiz Alberto Ferla

3 min de leitura

Imagem de capa Liderança jovem e empresas B para um futuro desejável

Sociedade

04 Agosto | 2021

Liderança jovem e empresas B para um futuro desejável

Acreditar no potencial da ação coletiva é diferencial para novos líderes e para organizações que desejam ressignificar o que é sucesso para os negócios

Lara Cavalcanti Martins

5 min de leitura