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Desenvolvimento pessoal

26 min de leitura

Rio Doce: a gestão após o desastre

A gestão da Fundação Renova, criada para lidar com a crise gerada pelo rompimento da barragem da Samarco em um típico contexto VUCA, tem muitas lições para ensinar às empresas.

22 de Maio

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Artigo Rio Doce: a gestão após o desastre

"O mundo, especialmente no século 21, caminha para situações muito parecidas com a que estamos enfrentando aqui, que é a constituição de organizações voltadas para a solução de um problema específi co e a participação da sociedade na governança.” Quem diz isso é Roberto Waack, diretor-presidente da Fundação Renova, organização criada para resolver os gigantescos problemas gerados pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco na região do rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo.

Quando a barragem de Fundão se rompeu, em 5 de novembro de 2015, a “avalanche” de lama tóxica destruiu muitas vidas – literalmente matou pessoas, animais e plantas, e derrubou as casas, o sustento e a memória afetiva da população. Como se lida com uma tragédia socioambiental, econômica e cultural dessas proporções? 

Em março de 2016, a Fundação Renova foi criada – com o dinheiro da Samarco e suas acionistas, Vale e BHP, mas com independência de ação – para achar as soluções. Ela responde a múltiplos stakeholders, que incluem as empresas, os atingidos, a sociedade civil e os governos. Esse modelo de governança tem sido considerado o que há de mais avançado para um desafi o assim, mas faltam experiências práticas.

Cabem à Fundação trabalhos de reparação e compensação em uma área de 690 quilômetros de extensão, incluindo cuidar de saneamento básico e qualidade da água, construir barragens e rodovias, investir em saúde e educação, indenizar pessoas, restaurar cidades e reativar a economia local – que já era muito ruim antes do desastre. 

Muitos atingidos acham que nada vem sendo feito, assim como a grande imprensa. Mas os resultados e os aprendizados – as duas coisas têm de andar juntas – começaram a aparecer. Em março de 2018, Erik Solheim, diretor-executivo da ONU Meio Ambiente, elogiou as entregas da Fundação e destacou o caráter inovador do sistema de governança adotado. “Os resultados alcançados até agora são encorajadores e servem como exemplo em nível internacional”, declarou em sua visita à região.

Em entrevista exclusiva, Waack detalha essa gestão em condições de volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade (VUCA, na sigla em inglês), que concilia curto e longo prazo, além de cocriação. E revela o que o move: proporcionar um modelo econômico novo.

A sociedade tem a percepção de que nada está sendo feito para consertar o estrago em Mariana. Alguns atingidos acusam a Fundação Renova de trabalhar para a Samarco. A pergunta é: por quê?

Acho que é uma estrutura nova, a gente tem dois anos e pouco, e o primeiro ano foi quase todo dedicado à transição entre o primeiro atendimento da Samarco e a instalação da Fundação. Temos 10 mil atividades correndo diariamente, há muita coisa sendo feita, sim, e muitos resultados para mostrar. São muitos aprendizados. Mas realmente estamos aquém do que eu gostaria. 

Atribuo essa percepção a vários fatores. Em primeiro lugar, a situação de vulnerabilidade é dramática; já era antes – a área do rio Doce tinha índices de desenvolvimento muito ruins – e piorou. Em segundo, há medo e raiva, o que é totalmente compreensível. Até porque certas soluções criam novos problemas.

Em terceiro, confunde-se a questão jurídica, de punir responsáveis, com o trabalho de reparação e compensação da Fundação; são coisas distintas. Além disso, a governança da Fundação é bem complexa, o que a torna difícil de ser entendida por todos – e, portanto, dificulta que eles aceitem a previsível lentidão nas decisões acordadas entre vários stakeholders.

Outro ponto é que o trabalho ocorre com base em tentativas, erros e ajustes, porque não houve nada parecido antes para copiarmos. Por fi m, fazer propaganda das realizações está fora de cogitação, seria absurdo investir dinheiro nisso e não no que importa. Pessoalmente, toda vez que falamos de uma realização, dizemos “fizemos isso, mas ainda falta tudo isso”.

Também não há uma ação tradicional de relação com a imprensa, que costuma ser reticente em desastres assim, no Brasil e no mundo inteiro. Nossa aposta é na geração de conhecimento sobre as soluções que estamos desenvolvendo.

Como está o desempenho da Fundação em relação aos benchmarks possíveis?

Estudamos, entre outros, os casos da BP, do Exxon Valdez, do vazamento da usina atômica de Chernobyl, algumas situações de desastres naturais, como tsunamis. Do ponto de vista de governança, não existe nada parecido mesmo. 

Como estamos? No caso do acidente nuclear de Fukushima, no Japão, em 2011, o processo de reassentamento dos atingidos está bem aquém do nosso, apesar de terem se passado sete anos. A explosão da plataforma da British Petroleum no Golfo do México foi em 2010 e o processo de indenização ainda não chegou ao estágio em que está o nosso três anos depois. No episódio das Torres Gêmeas, de Nova York, foram-se 17 anos e as indenizações não terminaram. 

A seu ver, o trabalho seria possível sem essa governança multistakeholders mais lenta? 

Essa governança acrescenta complexidade à gestão, com certeza, mas é preciso mesmo ter uma governança desse tipo sempre que há elementos como alta complexidade, ambiguidade, incerteza e volatilidade envolvidos, além do debate entre pessoas com diferentes opiniões. O desenho conjunto das ações leva tempo, exige muito, pode desgastar, mas não vejo outra saída. O consentimento – não o consenso – vai surgindo aos poucos.

Isso nos faz perder tempo na concepção, sim, mas também permite ganhar tempo na implementação. E principalmente ganhamos qualidade nesse sentido. Um reassentamento perfeito tecnicamente mas com pouca consulta tem uma chance pequena de dar certo, por exemplo. As pessoas não se veem morando ali. No nosso caso, os arquitetos se reúnem com os moradores para que cada casa seja desenhada individualmente, e as obras avançam.

Essa concepção demorada já está finalizada?

Acho que em dois anos a gente estará na fase final de desenho da maior parte dos 42 programas, mas com grande parte da execução já feita. 

A PESSOA CERTA NO LUGAR CERTO

O papel de escutar os diferentes stakeholders, olhar o meio do caminho possível, fazer a costura entre eles e facilitar a chegada até o objetivo acordado é um dos mais cruciais dentro da Fundação Renova. Ele cabe à diretoria de desenvolvimento institucional, que conta com 90 membros e é comandada pela bióloga Andréa Azevedo, mestre e doutora em gestão ambiental.

Onde encontrar um executivo empático e capacitado para liderar um projeto tão complexo? No Brasil. Afinal, como diz o estudioso Henry Mintzberg, o Brasil é famoso por sua inovação social. Roberto Waack, biólogo graduado pela Universidade de São Paulo com mestrado em negócios e atuação em empresas como Grupo Orsa e Boehringer Ingelheim, acumulou ao menos três experiências bem difíceis antes da Fundação Renova, que, embora em escala bem menor, prepararam-no para o desafio.

Uma experiência foi a Orsa Florestal, primeiro grande projeto de manejo florestal da Amazônia, no qual Waack trabalhou entre 2000 e 2005. Se plantar eucalipto na região já era algo em si questionado pela sociedade civil organizada, nacional e internacional, ainda havia os desafios de engajar a população local, lidar com madeireiros ilegais e se relacionar com o contexto político local – os múltiplos stakeholders com interesses antagônicos. O êxito da governança foi tão grande que o Forest Stewardship Council (FSC), um dos reticentes, acabou convidando Waack para presidir o conselho internacional – o que ele fez durante três anos.

A segunda experiência-chave foi uma iniciativa empreendedora e com fins lucrativos. Em 2008, Waack fundou uma empresa para gerenciar todos os tipos de florestas conciliando produção e conservação – combinando o manejo e o plantio de espécies nativas com o plantio de eucaliptos, e trabalhando com diferentes opções de produzir madeira – material nobre e desejado pela sociedade. Isso atraía investidores institucionais e um grande fluxo de capital, mas deixava o mundo inteiro de sobreaviso, por conta da relação entre floresta e mudanças climáticas aqui, assim como para a relação entre os ativos naturais e a água. Então, como Waack descobriu, o sucesso da Amata dependia da mobilização da sociedade em prol de uma “economia da floresta tropical”. O ponto central era produzir externalidades positivas, no lugar de externalidades negativas – “em vez de causar mais danos colaterais com nossa atividade, tínhamos de gerar efeitos positivos no local das florestas – como promover o sequestro de carbono, contribuir para manter mananciais hídricos, levar a uma situação social mais equilibrada”, conta.

Em 2015, Waack começou a viver sua terceira experiência-limite: a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, que ajudou a fundar, e inclui instituições como o Instituto Ethos e o Conselho Empresarial Brasileiro para Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) de um lado, e a Sociedade Rural Brasileira e a Indústria Brasileira de Árvores, de outro. Nesse fórum, o ambiente de ambiguidade era a tônica: as posições muitas vezes eram conflitantes, mas as partes precisavam caminhar para um campo comum. “Tínhamos de construir alguns pontos de convergência, porque o potencial de embate era grande”, lembra Waack.

Ali ficou claro para ele um conceito valioso, que tem contribuído muito para a Fundação Renova: não se trata de obter consenso sobre as coisas, ou uma visão homogênea, o que tende a ser impossível; trata-se de obter consentimento para que que a agenda avance. Na opinião de Waack, aliás, o consentimento é um ponto central à gestão no mundo VUCA.

Como vocês lidam com a pressão dos prazos?

Alguns estão sendo cumpridos – como os de manejo de rejeitos, avaliação da qualidade da água, assentamentos. Outros não. Programas menos tangíveis, como o das etnias indígenas e o de proteção social ainda demandam esforço maior. Estamos aprendendo que certos prazos nunca foram factíveis. Destes, alguns são renegociáveis e outros pressupõem multas, que também serão rediscutidas. É um ambiente tenso.

Às vezes, demoramos também porque a legislação não é clara sobre como proceder. Por exemplo, aplica-se o Código Florestal ou a Lei da Mata Atlântica na reparação a uma propriedade atingida? Isso gera embate entre os estados e a Federação, inclusive.

Uma conquista é que os indicadores de avaliação dos programas já foram todos propostos – e alguns já estão de fato definidos. Essas métricas serão acompanhadas por uma auditoria independente, a EY, para garantir que estamos fazendo o combinado. 

Entendemos que o horizonte seria 2030...

Difícil dizer qual o fi m exato, mas será por aí. 

Para termos uma ideia das negociações, como se negociam as indenizações?

Começa pelo cadastro das pessoas impactadas, que é algo bem complicado. As pessoas que se julgam impactadas se apresentam e passam por uma longa entrevista de cadastramento. Mais de cem páginas são preenchidas em horas de discussão. E é um processo invasivo, em que se pergunta até sobre a situação familiar da pessoa.

Nesse cadastro aparecem coisas que são mensuráveis e outras menos concretas. Por exemplo, um pequeno negociante não tem uma contabilidade formal – 80% da economia dessa região é informal – e nem sabe o que é lucro. Como fazemos? Redesenhamos o negócio inteiro com a pessoa para que ela entenda qual é efetivamente sua perda. E ainda há os negócios que funcionavam de modo irregular: um areeiro que retirava areia acima do que podia, a pousada que não registrava os hóspedes.

Fazemos isso com dezenas de milhares de pessoas e assim desenhamos a matriz de danos – uma lista de possíveis itens que alguém pode ter perdido, como um negócio, uma casa, um pasto, um animal, uma geladeira, um sofá. A parte das vítimas é separada. 

Estamos tomando coragem para perguntar: como é, então, esse processo de governança?

Defi niu-se a necessidade de um programa de saúde, certo? Reunimos um conjunto de especialistas na câmara técnica de saúde, externa à Fundação, e eles apontam diretrizes: “é preciso avaliar o impacto da poeira”, “é preciso avaliar o impacto de metais pesados no sangue” etc. Na câmara técnica discute-se o problema a resolver, como pode ser resolvido, que tipo de alternativa técnica vai se desejar para aquela implementação, e isso vira uma nota técnica. Essa nota vai para votação no comitê interfederativo, que, então, delibera. A deliberação vem para a Fundação e nós a transformamos em um projeto, buscando o conhecimento necessário para propô-lo – com orçamento e prazo – para a câmara técnica que vai dizer “estou de acordo” ou “não estou”.

Os projetos são discutidos também no conselho curador, que opina com relação ao compromisso de alocação dos recursos e checa se aquilo é obrigação da fundação mesmo ou dos governos. Se tudo estiver certo, a Fundação executa. E tanto a câmara técnica em questão como o CIF monitoram essa execução.

É preciso dizer que o Ibama tem exercido uma liderança extremamente funcional no CIF, pois o comitê tem 110 pessoas de 70 organizações distintas e nunca uma reunião mensal deixou de acontecer. E também é preciso dizer que a governança evoluiu: desde agosto, tem muito mais fortemente a participação dos atingidos.

O DESAFIO DO ENGAJAMENTO

O papel de escutar os diferentes stakeholders, olhar o meio do caminho possível, fazer a costura entre eles e facilitar a chegada até o objetivo acordado é um dos mais cruciais dentro da Fundação Renova. Ele cabe à diretoria de desenvolvimento institucional, que conta com 90 membros e é comandada pela bióloga Andréa Azevedo, mestre e doutora em gestão ambiental.

Com larga experiência com ambientes conflituosos, Azevedo esteve por trás da costura feita na famosa Moratória da Soja, acordo segundo o qual, depois de 2006, as fabricantes de óleo deixaram de comprar soja de propriedades da Amazônia que estivessem desmatadas, o que garantiu redução de 86% do desmatamento em dez anos e a expansão da produção da soja em 170%, algo cinco vezes mais eficiente em reduzir o desmatamento em comparação com o Código Florestal brasileiro.

“É um pouco isso que eu tento fazer aqui na Renova”, conta Azevedo, que faz a comunicação com os atingidos, as várias instâncias políticas e o terceiro setor. “Com as comunidades, você constrói a comunicação aos poucos – a partir de uma presença no local, da escuta, da criação de confiança. Não é fácil; há o medo dos atingidos de não serem indenizados e há atores fora do sistema que exploram esse medo.” Um ponto importante é o olhar para o futuro; por isso, a comunicação com os jovens recebe bastante atenção.

Entre os instrumentos de construção de comunicação estão três jornais de comunidades – um em Mariana, um na Foz e um em Barra Longa. “Sentamos juntos e eles nos pautam. Produzimos o conteúdo e mostramos para eles antes de sair. A própria comunidade distribui”, relata a diretora. Dar voz aos atingidos e a outras pessoas da sociedade é a prioridade, para fazê-los acompanhar o processo de recuperação.

O site www.nocaminhodareparacao.org é outro instrumento: nele são postados vídeos do presidente, Roberto Waack, conversando com várias pessoas da sociedade e da comunidade sobre o trabalho. Os atingidos também fazem vídeo-reportagens contando, a partir da visão deles, o processo de reparação. Não há qualquer controle sobre esse conteúdo. “Nesses vídeos, aparecem os pontos negativos, em que a gente tem de melhorar”, diz Azevedo.

Para tudo isso funcionar, a diretoria de engajamento conta com seis gerências de território. Só um dos territórios abarca 50 comunidades, para se ter dimensão. Cada gerência conta com cerca de 10 pessoas, entre comunicadores locais, que fazem o diálogo social, e profissionais de relações institucionais, responsáveis por falar com prefeituras, câmaras de vereadores e o Ministério Público local. Os comunicadores locais são pessoas que preferencialmente já tenham relação com as comunidades, além de características como capacidade de articulação, proatividade, escuta e empatia. Elas também precisam de um perfil técnico, para poderem entender os programas em curso e fazer a comunicação de fora para dentro. Recebem treinamento em comunicação não violenta, facilitação, mediação de conflitos e direitos humanos, para citar alguns. Qual o tamanho disso? Para se ter uma ideia, em 2017, compareceram 28 mil pessoas a 1.205 reuniões da gerência de Mariana. 

Um exemplo do cotidiano de uma gerência de território é o cadastro dos atingidos na área que fica depois de Candonga, onde estão pescadores, areeiros e lavadeiras que dependiam do rio e perderam o ofício. Eles trabalhavam na informalidade e não tinham como comprovar renda. A gerência precisou definir o valor de indenização em conjunto com esses atingidos para não haver contestação. “Com os pescadores profissionais, por exemplo, a gente chegou a cinco categorias de rendimento”, comenta Azevedo.

É também importante a costura feita com os parceiros – desde o World Wildlife Fund (WWF) até o instituto Elos e várias universidades. Porém, a costura mais fundamental talvez seja com os 511 funcionários. Como seu ambiente de trabalho na Fundação é “80% emocional e 20% racional”, nas estimativas de Azevedo, é um grande desafio manter a motivação e o equilíbrio. “Somos muito cobrados e nos frustramos, porque investimos muita energia para que as coisas aconteçam e as pessoas acham que nada está sendo feito.” Além disso, diz ela, exigem muito de si mesmos. Existe um agravante que é a confusão entre o papel da Fundação e o papel do Estado. “Nós temos um papel suplementar ao serviço público, e não substitutivo, principalmente em algumas áreas como saúde e educação, e isso nem sempre fi ca claro para a comunidade.”

Um modo de suavizar o estresse é, pelo menos uma vez por mês, fazer rodas de conversa nos escritórios. Símbolos também importam: há dois meses foi instalado um gongo em cada unidade e, quando acontece uma coisa boa, o funcionário bate ali para celebrar. A cada bimestre se organizam encontros entre os escritórios e, no fi m do ano, há caravanas de todos os colaboradores para participar de reuniões, e fazer um balanço de conquistas e problemas. Também há um serviço de apoio psicológico ligado ao departamento de recursos humanos, que realiza sessões coletivas e forte respaldo da Fundação, para que não se sintam vulneráveis diante das pesadas críticas que lhes são dirigidas. O resultado de tudo isso é bom. Uma pesquisa de clima mostrou 80% de funcionários muito engajados e um turnover baixo para as circunstâncias, na casa dos 10% ao ano.

Como é a estrutura executiva da Fundação?

Hoje a execução é dividida em gerências, agrupadas em quatro diretorias. Uma cuida de infraestrutura. Outra trata das questões socioambientais. Uma terceira abarca as áreas de suporte – suprimentos, área legal, planejamento, tecnologia, fi nanceiro etc. E a quarta é a de relacionamento e engajamento – central, por cuidar dos relacionamentos políticos, com comunidades e com a sociedade. Além dessas diretorias, há a área para lidar com a governança.

Como são definidas as prioridades nesse cenário?

Isso é importante. Não dá para fazer tudo ao mesmo tempo. Deve haver negociação [de prioridades] entre as câmaras técnicas. Por isso, agora, integração é a palavra de ordem – para elas negociarem. As câmaras precisaram nascer de modo fragmentado: uma cuidava da saúde, outra da educação etc. Só que, obviamente, para o atingido, está tudo junto, não há essa separação. Então, temos de integrar.

Você falou em causar novos problemas. Quais?

Imagine um pequeno produtor que, um dia, ouviu dizer que estava chegando uma onda de lama e que precisava tirar os bois em duas horas. E que ele conseguiu salvar, sei lá, 10% dos animais, até a lama chegar e acabar com tudo. Então, dez dias depois, chegam os caminhões da Samarco para tirar a lama e bagunçam toda a propriedade. Daí, alguns meses mais tarde, chega o representante da Fundação e diz “você não pode mais ter aquele pasto na beira do rio, porque o Código Florestal não permite. Você precisa instalar uma cerca ali”.

Causaram problemas para ele três vezes, percebe? A Fundação precisa agir dentro da lei, mas está criando um problema. Criamos um programa de aperfeiçoamento da atividade econômica para melhorar o desempenho no que restou da propriedade e isso fazer sentido para esse produtor. E, para melhorar mais, temos a abordagem de paisagem, conceito de gestão novo, mas já sólido em alguns países.

Por favor, explique.

Leva em conta três elementos: a materialidade (que é o conhecimento técnico-científi co), o sensível (as emoções, os desejos, sem os quais esse conhecimento não fluirá) e a representação (nas artes plásticas, na literatura, nos documentos históricos), que faz a ponte entre o material e o sensível.

Quando você vê os grandes planejamentos que deram errado no Brasil e no mundo, eles foram feitos sob uma ótica absolutamente tecnocrática e regulatória, sem que as pessoas do território se envolvessem com suas emoções no processo. Por isso, a dificuldade de implementar foi enorme. 

Perdemos a capacidade de lidar com o sensível nas organizações. É tanta tecnologia, tanto conhecimento, que se deixa de fora esse lado dos desejos das pessoas. A abordagem de paisagem resgata os sonhos das comunidades. E isso faz as coisas acontecerem. Você conversa com os atingidos e eles dizem: “Eu quero o meu rio Doce de volta”. Não é o rio Doce do dia 4 de novembro de 2015, mas algum rio Doce que os avós lhes descreveram. Essa imaginação coletiva tem de estar presente no processo; deixando-a de fora, o conhecimento não vai virar entrega.

Como estão agindo Samarco, Vale e BHP?

Nunca deram uma negativa do tipo “não tenho recursos”. Discutem algumas coisas, mas, mesmo que não concordem, nunca pode ser uma definição final. Se o conselho curador tiver um entendimento diferente sobre algo, isso tem de ser levado a outras instâncias – como um painel de especialistas. Mas o painel nunca foi acionado apesar de já ter havido mais de 200 deliberações. 

O ambiente de atuação prioritário do conselho curador é o da execução da Fundação – se as coisas são feitas com compliance e boas práticas.

A GOVERNANÇA COMPARTILHADA

A Fundação Renova foi criada por meio de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), que está para ela como a Constituição está para o Brasil. O termo foi assinado entre a mineradora Samarco, responsável pelo desastre, suas acionistas Vale e BHP, os governos federal e dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, e cerca de 70 autarquias, fundações e institutos, do Ibama à Funai, passando pelo Comitê da Bacia Hidrográfi ca do Rio Doce, a ICMBio e a Agência Nacional das Águas, e estabelece 42 projetos para serem trabalhados em três eixos: a centralidade nas pessoas, porque foi um desastre social maior até do que o já gravíssimo desastre ambiental; as ações no território, no que se refere a água e solo; e todas as frentes de infraestrutura.

O sistema de governança, montado para desdobrar esses projetos em planos a serem executados pela Fundação, tem mais de 300 pessoas envolvidas, e deve chegar a 400. “Trata-se de um modelo de controle compartilhado, em que não existe a possibilidade de nenhum dos atores tomar uma decisão e essa ser automaticamente implementada”, como explica Roberto Waack, diretor-presidente da Fundação Renova. Em agosto último, o modelo ainda ampliou o conceito de compartilhamento, incorporando a participação mais formal dos atingidos, com as comissões locais. As comunidades de atingidos têm o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos e da Fundação Getulio Vargas para se organizar e poder participar.

A estrutura básica mostrada no desenho é detalhada a seguir:

CIF – Comitê Interfederativo. Presidido pelo Ibama, conta com 20 membros que representam os governos federal, estaduais e municipais envolvidos, e as diversas autarquias , além de três representantes dos atingidos. Dois membros do Ministério Público e um da Defensoria Pública têm direito a voz, mas não a voto. Esse comitê orienta os trabalhos da Fundação e valida o que foi feito.

Câmaras técnicas. São 10 CTs em atividade atualmente, cada uma com sua especialidade: saúde, economia, água, assentamentos etc. Têm 110 pessoas de mais de 70 organizações, que são universidades, organizações não governamentais e governos, e definem as diretrizes que, se aprovadas pelo CIF, serão executadas pela Fundação.

Conselho curador. Tem 9 pessoas, sendo 6 representantes das empresas mantenedoras (Samarco, Vale e BHP), 1 indicado pelo CIF, 2 pelas câmaras regionais e 1 representante do conselho consultivo. O MP permanece como convidado. As decisões são por maioria simples.

Conselho consultivo. Composto por 26 membros indicados por vários stakeholders.
Comissões locais e câmaras regionais. Com representantes dos atingidos e assessores técnicos, supervisionam o trabalho em andamento em seu respectivo território, propondo eventuais ajustes nas ações, e mantêm a comunidade informada do que está previsto e do que vem acontecendo – estão previstas 19 e podem chegar a 39. As câmaras regionais têm como função equalizar as ações entre os diferentes municípios, para não haver disparidade entre eles, e também podem propor ações.

É importante ressaltar que três organizações externas ainda fazem o monitoramento do trabalho da Fundação: a auditoria EY, o Fórum dos Observadores (com representantes da sociedade civil, da academia e das comunidades atingidas) e a IUCN-Organização Internacional de Conservação da Natureza, para questões ambientais. A prestação de contas da Fundação, como se vê, tem de ser gigantesca.

FATOS E NÚMEROS DA FUNDAÇÃO RENOVA

  • 80 Mil Atingidos Já Cadastrados (30 Mil Cadastros Feitos);
  • 42 Programas;
  • 511 Colaboradores na Fundação;
  • 5 Mil Em Campo, Incluindo Terceirizados, 690 Km de Extensão;
  • 39 Municípios Impactados;
  • 5 Grandes Escritórios Administrativos;
  • 35 Escritórios do Programa de Indenização Imediata 1.200 Negociações por Dia Em 2017 (só para a Água);
  • 20 Centros de Informação;
  • R$ 4,1 Bilhões Gastos Até Agora, Estimativas Iniciais de R$ 12 Bilhões Em 10 Anos;
  • 1.500 Chamadas no 0800 e 300 Registros na Ouvidoria por Mês.

IMPULSO SOCIOECONÔMICO: 95% de mão de obra local nas ações de reparação. • Linhas de crédito para empresas endividadas e diversificação econômica. • Atendimento direto a micro e pequenas empresas diretamente impactadas. • Cursos de qualificação oferecidos em MG e ES – já foram formadas 438 pessoas desde setembro de 2017.
PRIMEIROS RESULTADOS: A questão dos rejeitos está bem equacionada, com a contenção no local do desastre, menos na usina hidrelétrica de Candonga, importante para reter o rejeito, mas com uma solução de engenharia ainda não definitiva. • Reparação dos 100 primeiros quilômetros do rio. • Os afluentes foram totalmente recompostos – eles é que limpam a água do rio Doce. • Recuperação das margens do rio Doce tem resultados acima dos esperados. • A rede de monitoramento da água do rio tem 92 estações funcionando; a qualidade da água voltou aos níveis pré-desastre; em situações de chuva forte, ainda aumenta a turbidez, mas isso não compromete o consumo – 68% da população já tomam essa água, atestada pela Agência Nacional das Águas como potável, mas cerca de 30% ainda não aceitam. • 100% das indenizações ligadas à suspensão do fornecimento da água já foram concluídas (255 mil negociações) e, das outras 20 mil indenizações que precisam ser equacionadas, 8 mil de danos gerais, somando o valor de R$ 1,21 bilhão (que ainda inclui auxílio fi nanceiro emergencial a 25 mil pessoas). • No reassentamento de 400 famílias em Mariana e Barra Longa, já houve escolha e compra dos terrenos, planos diretores, obtenção das licenças e início das obras, tudo em conjunto com os moradores. • Entre as obras públicas, Barra Longa já teve ruas e praça reconstituídas (mas ainda há debates sobre as rachaduras). • Em toda a região, há 85 profissionais dedicados ao suporte adicional ao sistema SUS. • Começaram os estudos toxicológicos e epidemiológicos, alguns com longa duração. • Estão sendo feitos, colaborativamente, os programas de saneamento básico com as 39 prefeituras.

O dinheiro previsto, de R$ 12 bilhões, bastará?

Não tem teto. Foi determinado que houvesse compensação e reparação. O valor compensatório é dirigido a atividades como restauração florestal, tratamento de afluentes etc. E a reparação deve ser integral – cobrirá o que for necessário, e isso pressupõe conhecimento da extensão do dano. Há estudos sobre o impacto do desastre na biodiversidade e na saúde humana que levarão dez anos. Então, R$ 12 bilhões é o valor total estimado nos primeiros dez anos, juntando o reparatório estimado com o compensatório predefinido. Mas não é um teto.

Com mais necessidades, surgem mais programas?

Necessidades surgem, mas a Fundação não pode incluir novos programas. Falamos: “a gente reconhece a importância disso, mas não pode fazer”. Mas muitas das novas necessidades conseguimos acolher dentro de programas existentes. Por exemplo, vamos fazer um programa de educação e o prefeito responde: “não tem onde fazer escola”. Construir escola não está nesse programa, mas tento encaixar no programa de infraestrutura. Agora, a Fundação não pode assumir a responsabilidade do Estado.

Quão difícil é lidar com 39 prefeitos?

Você pode multiplicar esse número por dois. Tratamos com as prefeituras e com as câmaras dos vereadores, e os fóruns não costumam pensar igual – também há conflitos entre prefeituras e estados. O que posso dizer é que isso requer especialidade. 

Como vocês lidam com os riscos?

Um foco é a segurança no trabalho. A gente opera em um território muito vasto, com grande quantidade de viagens em estradas precárias. Com veículos leves, o risco de acidente é enorme. Criamos um sistema de teleconferências para retirar o máximo de pessoas das estradas. Além disso, só no eixo 1, temos 500 caminhões fazendo três viagens por dia – percorrem meia-volta ao mundo a cada semana; é um perigo. A chave é educação, mais um compliance supercrítico, e teleatendimento e ouvidoria muito ativas.

Você se arrepende de algo? O que faria diferente?

Não sei se daria para fazer diferente, mas a inclusão formal dos atingidos na governança demorou mais do que deveria [foi em agosto de 2018] e isso gerou muita tensão. Envolvê-los rápido iria conferir legitimidade ao trabalho mais rápido. O desafio da comunicação com a sociedade também está longe de ser bem equacionado. E ficamos muito tempo com os programas compartimentados; até criamos o conceito de eixos, mas custou a cair a ficha da integração, dentro e fora da Fundação. 

O que eu não faria diferente é a governança – exceto pela inclusão dos atingidos – e os programas. Porém, daria mais clareza a quais programas são emergenciais e destinaria tempo a um planejamento integrado das demais ações, para conciliar curto e longo prazos. Ao não pensar no longo prazo durante as ações de curto erra-se muito. Urgências, long o prazo e construção conjunta são o nosso norte.

Como você avalia sua liderança?

Sempre aquém do que precisaria ser – em tudo. Gostaria que minha relação com os funcionários fosse muito mais intensa. Cobramos muita entrega, no tempo e no custo previstos e com excelência técnica, como em uma empresa. E cobramos de profi ssionais que, na maioria, vêm da academia e do terceiro setor. Eles estão sob estresse. Precisam de acolhimento, ponto fundamental para a estabilidade da organização. Temos rede social interna, grupo de WhatsApp, reunião mensal, mas não estou conseguindo; é frustrante. E a culpa é minha.

Como você aguenta o estresse e não desanima?

Relaxo nos fins de semana que passo em Gonçalves [MG] fazendo caminhadas. [risos]

Você falou em longo prazo. Qual seria o legado?

Em 15 anos, o rio Doce pode ser o ponto de virada de uso do solo do Brasil. Nenhum lugar terá tido tantos recursos para isso acontecer. Se a população achar que faz sentido, é possível ter no rio Doce um cenário de uma economia equilibrada, que concilie sistema produtivo harmonioso – do pequeno e do grande produtor –, inclusão social e sustentabilidade ambiental. Mas só se houver mobilização local. E monitoramento político. Os jovens vêm se mobilizando nesse sentido, com apoio nosso e do Instituto Elos.

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Seja curioso, tenha dúvidas, faça perguntas, mantenha-se atualizado sobre as novas tendências, acima de tudo tenha vontade de aprender. Invista no seu próprio crescimento e conhecimento para se tornar um excelente profissional, pronto para enfrentar qualquer desafio

Maicon Dias

3 min de leitura

Imagem de capa Pare de tentar equilibrar vida pessoal e profissional

Desenvolvimento pessoal

23 Março | 2023

Pare de tentar equilibrar vida pessoal e profissional

Vida só existe uma. E o trabalho se insere nela, não ao contrário. Alinhe seus critérios de sucesso profissional e valores pessoais para facilitar nas tomadas de decisão

Antonio Werneck

4 min de leitura

Imagem de capa Três técnicas para melhorar sua saúde mental e gestão emocional

Desenvolvimento pessoal

13 Março | 2023

Três técnicas para melhorar sua saúde mental e gestão emocional

Para viver melhor com você mesmo e com as outras pessoas, seja no trabalho com colegas ou em casa com a família, comece a desenvolver e praticar a autoconsciência sobre suas emoções

Virginia Planet

4 min de leitura