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Dossiê HSM

12 min de leitura

O sistema pivotou

Com o novo PMbok, bíblia do project management, a área migra dos processos para a performance; agora, no guarda-chuva de abordagens, cada gestor deve escolher as suas e combiná-las

Sandra Regina da Silva

15 de Setembro

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Artigo O sistema pivotou

A pandemia de covid-19 materializou o mundo Vuca para a gestão de projetos. Quase da noite para o dia, uns projetos foram cancelados, outros nasceram já urgentes e todo mundo foi para casa. Com a volatilidade, as incertezas, a complexidade e a ambiguidade, somados aos desafios do trabalho remoto, a disciplina das equipes precisou aumentar, bem como o jogo de cintura.

De um lado, houve microgerenciamento – “descemos até os mínimos detalhes do que foi feito, dos problemas encontrados e do que viria em seguida”, conta Luís César Menezes, diretor de projetos da Síntese Consultoria, que tomou cuidado para não ser invasivo. De outro, houve maior adoção dos métodos ágeis, por conta da quantidade de incertezas. “Aqui, além da reunião semanal, houve reuniões de 15 minutos com cada pessoa todos os dias– cada uma pilotando três ou quatro projetos”, diz Menezes.

Esse movimento aparentemente paradoxal aplainou o terreno para a sétima edição do PMBOK (sigla em inglês de corpo de conhecimento do gerenciamento de projetos), guia de boas práticas da área publicado pelo Project Management Institute (PMI), que reúne uma comunidade de 600 mil membros no mundo. A cada quatro anos, o PMBOK é revisado e atualizado, mas em agosto de 2021 foi mais do que isso. O primeiro PMBOK com Sunil Prashara como CEO praticamente pivotou o setor: com um número de páginas reduzido de 700 para 200, concentrou-se no essencial – princípios de entrega de projeto que devem formar um sistema de entrega de valor veja na figura 1 no fim deste artigo. E liberou os gestores para customizarem sua abordagem a projetos conforme seu contexto, usando a metodologia que achar mais adequada – a preditiva tradicional, a adaptativa ágil ou uma combinação das duas que lhes sirva melhor.

“O movimento que o PMI faz agora é importante, pois vai na direção oposta à da cúpula anterior, que negava o movimento ágil”, explica Menezes. Na prática, os gestores tradicionais estão sendo incentivados a adotar o ágil. Afinal, era a metodologia que vinha sendo cada vez mais usada pelas empresas mesmo, independentemente do que o PMI recomendasse. Relatório produzido pela Digital.ai confirma que os mecanismos ágeis são populares entre as empresas, como a reunião daily (que 85% dos gestores entrevistados afirmam utilizar), as retrospectivas (81%), o planejamento de sprints (79%), a revisão de sprints (77%) e os ciclos de iteração curtos (64%).

Ao mesmo tempo, o PMI tenta ser mais aceito pela comunidade ágil, um movimento que começou ainda em 2019, quando Prashara assumiu o cargo e adquiriu o kit de ferramentas DA – Disciplined Agile.

Os 12 princípios de entrega de valor constituem a espinha dorsal dos padrões de project management e do novo PMBOK. Substituindo os cinco processos anteriores – iniciação, planejamento, execução, monitoramento e controle, encerramento –, eles endereçam três grandes temas: (1) como possibilitar a entrega de valor, (2) como melhorar a interação entre stakeholders e (3) como entender as mudanças como instrumento de melhoria. Para muitos especialistas, os princípios do PMBOK lembram os princípios do Manifesto Ágil e do lean.

Outra mudança importante é que a nova edição do PMBOK “propõe uma visão mais holística”, como explica Adilson Pize, professor-convidado de gerenciamento de projetos na pós-graduação da PUC-RS. O pensamento sistêmico aceita que há interdependência entre os fatos e leva isso em conta antes de agir. Ele ganhou uma importância nunca antes vista, como resposta à complexidade crescente do ambiente.

Sem visão binária

O gerenciamento de projetos é uma prática antiga – o PMI foi fundado em 1969, por exemplo. Com as mudanças nas dinâmicas de mercado explodindo, a forma tradicional de gerir projetos, baseada em previsibilidade, estava se perdendo. Os projetos eram formatados como caixa fechadas em que nada poderia ser alterado em relação ao plano, do início ao fim. (Em muitos casos, ainda funciona assim.)

O movimento ágil – surgido em 2001 entre desenvolvedores de software para lidar com os elementos VUCA – começou a modificá-lo. Em linhas gerais, essa abordagem significa tornar a gestão de projetos mais fluida, com o desenvolvimento de um projeto dividido por fases ou ciclos (chamados sprints) e a possibilidade de alterações durante o trajeto, assim como experimentações e checagens com os clientes para se ter a certeza de estar num bom caminho. O ágil facilita as relações dos consumidores com as marcas, produtos e serviços novos e também o surgimento de modelos de negócio inovadores.

As empresas estabelecidas adoram o gerenciamento de projeto ágil. Isso não significa, no entanto, que estejam mergulhando de cabeça nele. A maioria o adota gradativamente, segundo a 15ª edição do State of Agile Report, publicada em julho de 2021. Algumas poucas decretaram a morte do método preditivo e o trocaram pelo adaptativo. Segundo os especialistas ouvidos nesta reportagem, erraram ao fazer isso.

“As pessoas têm uma visão muito binária: ou um ou outro. Não é nada disso. As duas abordagens são complementares, podem trabalhar de forma conjunta. O bom gestor de projetos compreende as duas e identifica como usá-las visando a melhor entrega”, diz Pize.

Edivandro Conforto, da Accenture Brasil, acrescenta que ver o ágil como antagônico ao PMBOK não faz nenhum sentido; ao contrário, o velho gerenciamento de projetos também tem evoluído no contato com o ágil. “Ele não precisa ser jogado fora; está sendo complementado com novas perspectivas, de pessoas, cultura, tecnologias e ferramentas”, afirma.

Como lembra Conforto, que na Accenture é diretor-executivo e líder para a América Latina da prática de business agility & transformation, a abordagem preditiva e a adaptativa prometem a mesma coisa: aplicar conhecimentos, habilidades, ferramentas e técnicas nas atividades do projeto a fim de atender aos seus requisitos. Uma pode proporcionar mais foco no cliente, outra mais eficiência (fazer mais com menos, fazer bem-feito com menor esforço e recursos), mas essas duas coisas são desejadas. Daí a força que o híbrido vem ganhando.

No Brasil

A área de gerenciamento de projetos foi organizada por aqui um tanto tardiamente, embora tenhamos expoentes de classe mundial, como Ricardo Vargas, entrevistado neste Dossiê. A primeira tentativa de fundar um capítulo do PMI no Brasil aconteceu em 1988, sem sucesso. Em 1992, houve uma nova tentativa que vingou, como conta Menezes, da Síntese, que integrou o grupo por trás desse segundo esforço. O início foi em São Paulo e, a partir daí, “foi havendo uma difusão gradativa, orgânica, para outros estados”. Menezes, por dar aula na Fundação Getulio Vargas e em muitos estados do Brasil, foi um dos responsáveis pela expansão.

O Brasil também tem nomes fortes nos métodos ágeis, como Alexandre Magno, um dos pioneiros do scrum em nosso mercado, e Rodrigo Yoshima, referência em kanban. Nosso delay, no caso da agilidade, foi bem menor. O modelo ágil começou a se popularizar em 2012, quando o Spotify fez o white paper ScalingAgile@Spotify. Porém, mesmo antes disso, por volta de 2009, a Adaptworks já lançava o movimento “agile” para o Brasil (na época, era citado só em inglês).

Diego Bonilha, agile coach da consultoria Adaptworks, conta que a empresa chegou a trazer o holandês Jürgen Appelo, criador do management 3.0, que é a gestão ágil, para ajudar a difundir o tema. A adoção dessa metodologia pelo mercado corporativo começou pelas startups e pequenas empresas.

As grandes companhias aportaram mais tarde à praia ágil – e muitas bateram cabeça no início, porque tentaram copiar a abordagem do Spotify. Segundo Confort0, isso estava fadado a não funcionar. “É um erro qualquer empresa buscar copiar o Spotify, porque não tem a cultura da empresa digital sueca, nem as pessoas, nem os processos. O caminho correto é cada companhia desenhar o seu próprio modelo, já encaixado com o que tem dentro de casa.”

Era do híbrido e do “wow”

Pode-se dizer que o PMBOK tornou o híbrido oficial, porém o correto mesmo é que cada gestor de projetos pode – e deve – escolher seu próprio WoW (sigla em inglês para jeito de trabalhar). É como se o gestor tivesse um canivete suíço de conhecimentos e escolhesse a ferramenta certa para cada ocasião. (A analogia é de Ricardo Vargas.)

Menezes, por exemplo, conta que sua empresa, a Síntese, desenvolveu um método híbrido próprio, que, focado no que é essencial no projeto, faz todo o planejamento no método preditivo e usa os rituais dos métodos ágeis, para dar ritmo ao trabalho das pessoas quando estão juntas.

“Temos dois quadros. Em um quadro enorme em que administro todo o conjunto de atividades para as semanas seguintes, nos concentramos no escopo, nas responsabilidades e nos prazos ao planejar. E temos um quadro do planejamento diário, com reuniões curtas, que vieram do scrum, framework do ágil. A entrega é na data definida, como no preditivo”, detalha ele.

As escolhas que as organizações têm de fazer hoje na seara da gestão de projetos são, na opinião de Conforto, principalmente duas: (1) qual método ou framework usar para determinado projeto e (2) como adaptar essa escolha ao contexto da empresa.

Começando pelo projeto, parece não haver dúvidas de que, nos de infraestrutura, grandes, como uma usina nuclear, o modelo que zela pelo tripé “prazo, custo e escopo” continua sendo o melhor.

O ágil é mais recomendado sempre que o projeto precisa de experimentações e tem alto grau de incerteza. É uma solução melhor para o desenvolvimento de software, por exemplo, para o qual ele foi criado. “Software é algo complexo, cujos detalhes só são definidos conforme o desenvolvimento vai acontecendo”, diz Pize, que também é CEO da Excellence Consultants. Tem-se de fazer análise, programação, testes e implantação/entrega, em várias fases e, por isso, é crucial ter a possibilidade de incluir elementos não previstos inicialmente ao longo do caminho.

Outro bom exemplo de ágil é desenvolver um novo modelo de carro. A prioridade é o motor, que ocuparia a primeira fase de entrega – isso pode ser testado sem a lataria, sem bancos, sem vidros. Se o resultado for bom, passa-se para a fase seguinte, do desenvolvimento da carroceria, e assim sucessivamente. Conforto lembra que a abordagem ágil é mais indicada sobretudo para o carro de hoje. O projeto do automóvel de Henry Ford, que tinha começo e fim, pode seguir um método preditivo. Mas agora que a ideia não é mais criar um carro, e sim um serviço de mobilidade, a melhora é contínua como no software.

Porém, para Conforto, a hibridização pode valer a pena até em casos típicos de uma metodologia. Para grandes projetos de infraestrutura, o PMO tradicional pode importar do ágil as reuniões diárias de 15 minutos, que melhoram a comunicação e antecipam problemas para que sejam evitados ou minimizados.

Agora, há a segunda questão, do encaixe no contexto da empresa. “O ideal é você não precisar adaptar a cultura organizacional ao método. Este tem que vir para ajudar a empresa a cumprir o objetivo estratégico e pronto”, afirma Conforto. A cultura ágil, no sentido de business agility, exige estrutura organizacional, modelo de governança, modo de fazer investimentos e distribuir recursos na organização compatíveis – e a maioria das empresas estabelecidas não conta com isso. Menezes concorda com Conforto: “Há organização que toma decisões de cima para baixo querendo impor o ágil às pessoas por causa de seus benefícios, mas não dá certo. É preciso querer pagar o preço também, que é treinar o pessoal, permitir maior autonomia etc.”.

Rumo à maturidade

Em todo o mundo, ainda há muito heroísmo em gerenciamento de projetos – indivíduos que trabalham mais com base no esforço pessoal do que com métodos. Tanto profissionais de gestão de projetos tradicionais como agilistas precisam de educação. Se a maturidade dos profissionais e das organizações na gestão de projetos já contribuía muito para o êxito de um projeto, isso fica ainda mais importante quando o tailoring – a customização – passa a ser a regra.

The PPM Benchmarking Report 2019, da Axelos, já dava uma ideia disso ao comparar empresas menos e mais maduras nessa atividade. Nas segundas há mais propensão a cumprir os objetivos de projeto (77% vs. 56%), a permanecer dentro do orçamento (67% vs. 46%) e a entregar no prazo (63% vs. 39%). Também encontra-se nas segundas a menor probabilidade de aumento de escopo (30% vs. 47%) e de haver uma falha total do projeto (11% vs. 21%).

É importante entender que a definição de maturidade passa por colocar cada vez mais métodos ágeis no guarda-chuva. Entidades sem fins lucrativos, como Greenpeace, WWF, Cruz Vermelha e Médicos sem Fronteiras, são uma inspiração nesse sentido. Seu PMBOK, que é o PMDPro (remete a gerenciamento de projetos para profissionais de desenvolvimento), tem o ágil como referência desde a primeira edição, de 2010, recomendando o planejamento em ondas sucessivas e o detalhamento somente das primeiras entregas. “A complexidade de um projeto de impacto é muito grande: lida com diversos stakeholders e a capacidade de prever o que vai acontecer no futuro é nula”, diz Andressa Trivelli, executiva e consultora da Rede Tekoha. “Sabemos que o planejamento vai mudar e que não há certeza do que vai acontecer ao longo do projeto.” Um exemplo trivial disso, segundo Trivelli, é o da gestora da cozinha de uma organização que fornece merenda para creche em parceria com a prefeitura. “Ela nunca sabe se no próximo mês a prefeitura vai entregar a verba no prazo certo.”

Para a executiva da Tekoha, o terceiro setor poderia mesmo ensinar muito sobre ágil ao mercado corporativo. “Temos a capacidade de envolver e colocar todos dentro de um projeto sem conseguir prever nada e acomodando a ansiedade. Além disso, fazemos o planejamento considerando um grande número de variáveis e de stakeholders.” Edivandro Conforto, da Accenture, concorda com esse protagonismo e crê que ao menos dois fatores de sucesso do project management no século 21 dependem da postura dos líderes em relação à agilidade – devem tratar o tema como assunto estratégico (não apenas como coisa da TI ou do PMO) e adotar eles mesmos um mindset ágil para dar o exemplo e mobilizar os colaboradores. “Além disso, eles devem começar pequeno e ir crescendo, gerando quick wins vitórias rápidas”, acrescenta. É consenso entre os especialistas que consultamos que a mudança da gestão de projetos não tem volta. Tudo que não é rotina é projeto – e teremos cada vez menos rotina neste mundo VUCA. Portanto, não espere a próxima crise para mudar seu PMO.

5 - sistema de entrega de valor

5 - projetos

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Autoria

Sandra Regina da Silva

Sandra Regina da Silva é colaboradora de HSM Management.

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