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Estratégia e execução

9 min de leitura

Em busca da complexidade

Não podemos nos contentar com soluções lineares que não dão conta da complexidade. a construção do pensamento complexo é o principal desafio a ser enfrentado neste momento

Carla Tieppo

30 de Julho

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Artigo Em busca da complexidade

Estamos chegando à terceira década do século 21. Nunca antes experimentamos mudanças tão significativas. E o aspecto mais emblemático desse tempo é a velocidade com que as mudanças acontecem. Um vírus viajando de avião é muito mais eficiente para espalhar o caos do que quando ele só tinha navios para se locomover. A primeira pandemia do século 21 traz em si as características do nosso tempo: uma velocidade assustadora de disseminação da doença e das informações sobre ela.

E nem sempre informações corretas. Este também é o tempo das fake news. Se no século 20 pudemos avançar substancialmente na disponibilidade de informações, nos tempos atuais o grande desafio é gerenciar as informações disponíveis, qualificá-las, priorizar seu processamento e usá-las para ampliar a qualidade da vida de todos nós por meio das ações que são executadas a partir dessas informações. Não podemos nos contentar com soluções lineares que não dão conta da complexidade. E, do meu ponto de vista, a construção do pensamento complexo é o principal desafio a ser enfrentado neste momento.

Minha inspiração para colocar a necessidade de construirmos análises sistêmicas que consideram a complexidade para compreendermos os fenômenos decorrentes das mudanças que estamos vivendo vem da neurociência. Os achados dessa jovem ciência, cujo objeto de estudo é o sistema nervoso e seu principal representante, o cérebro, provocam o confronto direto com qualquer visão simplista sobre a compreensão da dinâmica do comportamento humano. Esse aspecto, que é central para diferentes aplicações no ambiente organizacional, como a gestão de pessoas, a formação de lideranças, o estudo sobre produtos e possíveis inovações, e a experiência de usuários e consumidores, tem revelado que as lógicas lineares não são mais suficientes.

Um bom exemplo desse confronto é revelado pela economia comportamental, que já recebeu o reconhecimento da academia por revelar a complexidade do processo de tomada de decisão influenciado fortemente pela emocionalidade do indíviduo, mas ainda é vista com desconfiança por aqueles que acreditam que o processo de tomada de decisão é baseado em dados racionais. E quanto maior a necessidade de velocidade na tomada de decisão, maior é a influência que as experiências anteriores traduzidas pela atribuição de valências emocionais terão. Daniel Kahneman, Prêmio Nobel de Economia, explica esse fenômeno em detalhes na sua obra mais famosa: Rápido e devagar: duas formas de pensar.

Os achados da neurociência não nos permitem ignorar a complexidade da mente humana. Muito pelo contrário: reforçam a ideia de que é preciso investigar com bastante cuidado os elementos que exercem pressão sobre a interação entre sistemas de alta complexidade. Cada ser humano guarda em si a expressão da complexidade em seus cérebros constituídos de redes neuronais que vão sendo estruturadas ao longo da experiência de vida. Assim, os ambientes relacionais são conjuntos de complexidades interagindo entre si e formando um novo nível de expressão dessa complexidade.

Parece confuso, mas não é: é complexo. E exatamente por isso não devemos buscar a simplificação com estratégias lineares ou quantificações setorizadas. Os índices e as métricas precisam respeitar a complexidade. Quando tentamos dar linearidade a um sistema complexo sempre desprezamos a interação de variáveis que dão sentido ao sistema. A visão e o pensamento sistêmico são o que precisamos para obter soluções em sistemas complexos. E, por mais claro que isso pareça estar nos livros e nos seminários acadêmicos, é a porção geradora de maior complexidade desse sistema que é tratada como a parte mais simples e linear dele: as pessoas.

GESTÃO DE PESSOAS

É comum que as soluções para gestão de pessoas sejam baseadas em proposições simplistas e, infelizmente, temos visto a própria neurociência sendo usada de forma inadequada para servir a essa simplificação. Enquanto as ciências humanas reivindicam que as pessoas sejam tratadas no âmbito de sua subjetividade e complexidade, a neurociência tem sido apresentada como a teoria por trás de uma leitura simplificada do comportamento humano que insere o ser humano nas forças naturais e restringe as dinâmicas ao campo da sobrevivência, dos medos e das zonas de conforto, da preguiça e da falta de energia.

A neurociência e o ser humano vão muito além, e há bons indicativos que revelam isso. Um dos mais relevantes vem do desenvolvimento da inteligência artificial. Foi o conhecimento sobre o funcionamento cerebral que ajudou a substituir um modelo de inteligência artificial que propunha um encadeamento linear de pensamentos lógicos e analíticos por uma nova visão nutrida pelas pesquisas neurocientíficas de que precisamos ser capazes de reconhecer padrões de comportamentos de dados para inferirmos sobre relações de causa e efeito mais complexas.

Umas das perspectivas mais interessantes dessa aplicação é o entendimento mais aprofundado das construções de redes neuronais hierárquicas. Esse mesmo conhecimento, quando aplicado à tecnologia de processamento de dados, permitiu substanciais avanços na inteligência artificial. É pela construção de redes hierárquicas de reconhecimento de sons, palavras e expressões mais utilizadas nas mais diferentes circunstâncias que assistentes virtuais como Siri ou Cortana são capazes de compreender o que dizemos mesmo quando não somos absolutamente claros na emissão sonora.

Na verdade, esses softwares, assim como nosso cérebro, já possuem algum grau de expectativa do que está por vir e refinam sua capacidade de percepção usando como base reconhecimento de padrões executados anteriormente. Obviamente que o cérebro humano apresenta graus de complexidade de processamento muito maiores do que os softwares que temos disponíveis hoje, mas a forma com que modificamos, a partir dos estudos neurocientíficos, a visão de processamento linear de informações para esse processamento de reconhecimento de padrões e redes hierárquicas é muito inspiradora para que possamos reavaliar nossas práticas de desenvolvimento e gestão de pessoas.

Um dos pontos que realmente pode se beneficiar da inserção dessa visão sistêmica sobre a gestão de pessoas é aquele que busca tornar a relação do indivíduo com a prática cotidiana do seu trabalho em uma relação verdadeiramente sustentável. Essa sustentabilidade é o alicerce de que precisamos para que a manutenção do engajamento e da motivação necessários para que as adversidades cotidianas de um mercado baseado em disputa acirrada e superação sejam enfrentadas. E aqui os estudos da neurociência trazem uma contribuição inestimável que produz uma guinada de 180º na percepção dos gestores sobre o papel do sistema emocional. Esse mesmo que tem revolucionado a compreensão da dinâmica da tomada de decisão e que alguns insistem em pedir que seja deixado em casa quando vamos ao trabalho.

REVOLUÇÃO EM CURSO

A principal revolução que a neurociência tem para fortalecer é aquela em que a visão sistêmica de um indivíduo depende fundamentalmente da interação complexa das suas dinâmicas emocionais. Na compreensão complexa do funcionamento das redes hierárquicas cerebrais, essas dinâmicas emocionais são as responsáveis pelo reconhecimento da constância de padrões, assim como fazem os novos softwares de inteligência artificial. Depreender disso que a função de reconhecimento de padrões é fundamental para que o processamento de dados ganhe velocidade e potência inteligente é como dizer que o sistema emocional é o verdadeiro responsável pelo que reconhecemos como inteligência, e isso vai muito além daquilo que tem sido chamado de inteligência emocional.

A base estrutural do processamento de dados depende do sistema de reconhecimento de padrões, um sistema complexo que tem o processamento emocional como estrutura de atribuição de valor, que permite que escolhas sejam feitas em milésimos de segundos e que comportamentos sejam executados em modo automático. A verdadeira capacidade relacional e as desejadas soft skills são decorrentes da qualidade do funcionamento desse sistema de atribuição de valor que aprende a escolher automaticamente caminhos a seguir a partir de resultados alcançados. Engana-se, porém, quem acha que esses objetivos são traçados pelo sistema de planejamento de longo prazo. As decisões de comportamento dependem muito mais da complexidade que deriva das vivências do indivíduo com a cultura organizacional que efetivamente é praticada.

Assim, se os gestores de uma organização praticam o modelo cultural baseado na insegurança para manter seus funcionários distantes da zona de conforto com o objetivo de que se esforcem para ser relevantes, veremos que não há espaço para uma produtividade real. O objetivo estará centrado em mostrar-se fundamental ao sistema, mesmo que isso não signifique ser relevante de fato. Somado ao fato de que as métricas de avaliação de desempenho precisam usar de transparência para serem respeitadas, esse sistema fica muito vulnerável à prática de metas por elas mesmas e essa prática se torna mais importante do que buscar resultados de produtividade efetiva. Assim, o espaço será totalmente preenchido por estratégias baseadas na aversão à perda que são exatamente o contrário do que desejam empresas inovadoras e prontas para arriscar seu próximo passo rumo à transformação digital e à construção de um futuro em que a empresa permaneça relevante.

Assim, o pensamento linear forjado durante um século inteiro sobre o comportamento humano que se negou a incorporar as principais teorias complexas sobre a mente humana advindas das escolas psicológicas mais profundas, e que foi a base da psicologia organizacional, precisa se libertar dos modelos cenoura e chicote para motivação e comando e controle para garantir resultados. Mas a razão para que essa mudança seja necessária não é apenas a modernização das relações de trabalho ou da dinâmica de mercado. O motivo está justamente no cerne da neurociência.

A NEUROCIÊNCIA

Quando precisávamos que as pessoas exercessem seu trabalho de forma repetitiva e sem erros, podíamos tratá-las como autômatos sem complexidade mental. Mas agora que queremos indivíduos que conseguem expressar o máximo da capacidade cerebral complexa humana, precisamos que a dinâmica emocional seja direcionada para o objetivo de construir valor na entrega da empresa por meio de seus serviços e produtos. Precisamos valorizar a capacidade de compreender os elementos de complexidade que são estruturais para a edificação de times de alta performance e mantê-los assim sem precisar de exercício de autoridade ou escaladas de promoções e cargos que tornam a dinâmica da empresa insustentável, especialmente quando se trata de talentos que não podem ser desperdiçados. Inclusive a razão para que esses indivíduos sejam considerados talentosos é a capacidade de navegar em sistemas complexos e produzir novos níveis de análise dentro dessa complexidade.

Caso o ambiente corporativo não seja receptivo à complexidade, não poderá se beneficiar do que ela pode incorporar de valor à organização. Quem poderá transformar indivíduos comuns em potenciais inigualáveis é a dinâmica emocional que for praticada na organização. A hora é de compreender o sistema emocional exatamente como ele é. Evitar compreensões superficiais que colocam o sistema emocional no lado frágil do sistema é o primeiro ponto a ser tratado. Reconhecer que a tão desejada resiliência não é conseguida calando as necessidades emocionais, mas justamente fortalecendo as escolhas de padrões que trazem melhores resultados baseados em experiências codificadas pelo sistema emocional.

As raízes da motivação, do engajamento e da sustentabilidade de uma cultura organizacional são fruto da construção adequada de um ambiente que promove uma dinâmica emocional com intencionalidades ajustadas, compromisso ético e desejo de edificar algo de valor para si e para a sociedade como um todo. Essa é a prática da verdadeira sustentabilidade das relações humanas no ambiente organizacional que está diretamente associada ao sucesso da gestão de pessoas de uma organização. E a neurociência está pronta para explicar como isso funciona na complexidade do cérebro humano.

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Autoria

Carla Tieppo

Neurocientista, doutora em Ciências pela USP. É professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. É palestrante e consultora, e integra o corpo docente da Singularity University no Brasil.

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