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Tecnologia e inovação

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DO ÁGIL AO ANTIFRÁGIL

No mundo VUCA, as empresas têm de ser como a mitológica fênix – no sentido da rapidez – e também como a hidra, que ganha duas cabeças sempre que perde uma e se fortalece nas crises.

27 de Agosto

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Artigo DO ÁGIL AO ANTIFRÁGIL

“Existem três tipos de clientes da Netflix: um grupo gosta da conveniência da entrega gratuita em casa; outro aprecia o acesso a uma ampla seleção de filmes da nouvelle vague e de Bollywood; e o terceiro curte a barganha de assistir a dez ou mais filmes por US$ 18 ao mês. Precisamos manter os três públicos felizes, porque, quanto mais a pessoa usa a Netflix, mais ela quer permanecer conosco.”

O ano era 2005, e a Netflix ainda não oferecia streaming de vídeo; resumia-se a uma empresa de locação de DVDs pelo correio. Mas, naquele depoimento para a revista Inc., seu fundador, Reed Hastings, parecia saber exatamente o que fazer para transformar a marca em uma potência do entretenimento mundial. A própria criação da Netflix, em 1997, está vinculada à premissa do foco total no cliente. 

Hastings vislumbrou o negócio depois de ser obrigado a pagar US$ 40 por devolver com atraso o VHS de Appolo 13 em uma Blockbuster. Em apenas dois anos, a base de usuários da Netflix já contava com 239 mil pessoas. 

O resto da história você conhece. O envio de DVDs pelo correio ficou obsoleto, mas, antes, a Netflix migrou para o streaming. Já a Blockbuster, que chegou a ter 9 mil lojas nos Estados Unidos, pediu concordata em 2010. Uma década antes, havia tido a chance de comprar 49% da Netflix por US$ 50 milhões e recusado. E, quando resolveu criar uma solução própria de filmes online, era tarde. Hoje a Netflix tem mais de 100 milhões de assinantes e valor de mercado superior a US$ 60 bilhões, e a Blockbuster é insignificante. 

Incontáveis fatores levaram a Netflix a crescer vertiginosamente e a Blockbuster a sumir do mapa. Nenhum deles, no entanto, foi tão fundamental quanto a capacidade de interpretar um mundo cada vez mais volátil, incerto, complexo e ambíguo – cenário que, em inglês, é resumido pela sigla VUCA – e a adaptação rápida ao que acontece. Cunhado pelo Exército norte-americano para lidar com conflitos no Oriente Médio nos anos 1990, o acrônimo extrapolou os círculos militares para deixar sua marca no meio corporativo. 

A Netflix soube fazer essa interpretação e se adaptar; a Blockbuster não. Empresas como Google e Amazon dificilmente chegariam ao nível de excelência que têm hoje se não tivessem líderes com capacidade de interpretar o VUCA e se adaptar. 

Enquanto a maioria das organizações insiste em planejamentos estratégicos de longo prazo e aposta todas as suas fichas em teorias como as cinco forças de Porter ou a matriz SWOT –, Netflix, Google e Amazon aceitaram que a não linearidade dos fatos veio para ficar e vivem plenamente o mundo VUCA. Fazem isso sendo rápidas para se adaptar ao que acontece a sua volta. Fazem isso reduzindo as fragilidades que, ante acontecimentos fortuitos, poderiam levá-las ao colapso. 

Um número crescente de empresas tem compreendido que viver o mundo VUCA significa tomar duas decisões: tornar-se ágil, como o desenvolvimento de software, e antifrágil, como prega o ensaísta e matemático libanês-americano Nassim Taleb, que é professor de engenharia de risco da escola politécnica da University of New York.

 O ágil é rápido para se adaptar porque divide seus projetos em diversas etapas e faz cocriação com o cliente em todas elas. O antifrágil não apenas tem uma estrutura que resiste bem às crises, mas sai fortalecido delas. Taleb recorre, inclusive, à mitologia grega para representar a antifragilidade: antifrágil é a hidra, que, ao perder uma cabeça, ganha duas e fica mais poderosa, muito superior à fênix, que, quando renasce das cinzas, volta igualzinha ao que era antes.

Este Dossiê se apropria das metáforas de Taleb mantendo a hidra associada à antifragilidade e conectando a fênix à agilidade – a ave vive em etapas, pois morre e renasce, voa rápido e era ligada ao deus Hermes na Grécia antiga, representada em seus templos. Simbolicamente, no mundo VUCA, é preciso ser fênix e hidra ao mesmo tempo, conceitos cuja complementaridade é cada vez mais visível. 

Uma coisa é compreender tudo isso; outra, bem diferente, conseguir mudar nessa direção. 

A AGILIDADE

A concepção de ágil remete ao adjetivo que denota mover-se com velocidade, mas o transcende. Do inglês agile (pronuncia-se “ajaiel”), os métodos ágeis são a marca registrada do desenvolvimento de software, que é uma prática de gerenciamento de projetos em empresas de tecnologia. 

O que nem todos sabem é que as origens da filosofia ágil remontam ao chão de fábrica da indústria automobilística norte-americana, algo que logo seria empregado e aprimorado pelas montadoras japonesas. A principal delas foi a Toyota, criadora da filosofia lean de gestão, orientada à mitigação do desperdício. A empresa popularizou o sistema kanban, um modelo visual de abastecimento baseado em anotações em cartões coloridos, uma espécie de precursor dos post-its. 

Seguindo os mandamentos do lean, as equipes da Toyota valiam-se do kanban para horizontalizar a comunicação muito antes da massificação dos smart phones, tablets e computadores de última geração. Não foram só os primórdios da qualidade total; ali nasciam a flexibilidade extrema, o compartilhamento do risco e a busca da melhoria contínua e incessante. 

Em fevereiro de 2001, quando o mundo já se mostrava extremamente volátil, um grupo de programadores se reuniu em um resort nas montanhas de Wasatch, em Utah, EUA. O objetivo não era aproveitar a estação de esqui do local, e sim criar um fórum para repensar os rumos da indústria de tecnologia. Ao fim de dois dias de encontro, aquelas 17 pessoas de nomes conhecidos no segmento lançariam o documento Agile Manifesto, traduzido no Brasil como Manifesto do Desenvolvimento Ágil de Software. 

Em sua essência, o movimento defendia a descoberta e o compartilhamento de melhores práticas para o desenvolvimento de software. Sabia que seria preciso promover a valorização das relações humanas e a colaboração com o cliente e reduzir o rigor característico dos planejamentos de longo prazo e das negociações contratuais. 

Isso foi uma pá de cal sobre décadas de gerenciamento de projetos no modelo em cascata, em que o desenvolvimento era feito de modo sequencial, sustentado pela tríade ortodoxa de planejamento, execução e teste. O envolvimento do cliente, antes restrito à primeira e à última etapa, agora seria bem mais frequente. Os métodos ágeis incluíam projetos conduzidos por equipes independentes e com a ajuda de frameworks, espécies de templates. 

“A grande diferença dos métodos ágeis é que eu faço um projeto sem saber qual será o produto final; sei meu compromisso com o objetivo final e vou inserindo o cliente em cada etapa do projeto para definir a próxima”, detalha Pedro Waengertner, professor da ESPM-SP e cofundador da aceleradora de startups Ace. 

O manifesto dos desenvolvedores explica por que as organizações da área de tecnologia foram as pioneiras na proliferação dos métodos ágeis e tem parte da culpa por empresas como Netflix, Google e Amazon brilharem tanto. “A Amazon vai além: é o tipo de empresa que tem o ágil no core business, que não aceita esperar nada para gerenciar seu negócio”, explica Waengertner. No caso da Amazon, as equipes independentes são as próprias plataformas independentes sobre as quais ela se movimenta, que lhe permitem atender o consumidor de qualquer parte do mundo com muita rapidez. 

O problema é que, passados 16 anos do Agile Manifesto, boa parte das organizações de fora dos setores de tecnologia ainda não adotou a mentalidade ágil. E, ao mesmo tempo, o mundo se tornou VUCA, trazendo novos e complexos desafios. 

A ANTIFRAGILIDADE

Uma das características do mundo VUCA são os fatos imprevisíveis, capazes de transformar a sociedade de um dia para o outro, como foi o ataque terro rista de 11 de setembro de 2001. Eles foram chamados pelo matemático Taleb de “cisnes negros” no best-seller A lógica do cisne negro, que, em 2006, profetizou a crise econômica de 2008 tanto do ponto de vista dos estragos nos mercados de derivativos como da perspectiva da quebradeira no mercado imobiliário norte-americano. 

A maneira de abordar os cisnes negros é a antifragilidade, como explica Taleb em outro best-seller, Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos, em que ele dissemina a ideia de que é possível usar o limão mais ácido, azedo e ressecado para fazer uma deliciosa limonada. Segundo Taleb, podemos ficar muito mais fortes após o caos proporcionado por uma situação extrema. A crise de 2008, por exemplo, levou governos, organizações e pessoas do mundo inteiro à falência, mas trouxe lições que tornaram o sistema financeiro como um todo mais robusto. 

Como as empresas podem aplicar na prática a teoria de Taleb? Um dos caminhos mais assertivos é remover o máximo de fragilidades que afetam o negócio – ou mesmo a vida das pessoas envolvidas. Em outras palavras, é preciso adotar a chamada “via negativa”, em que 90% dos problemas podem ser solucionados com um único movimento – excluindo os excessos. 

Outro pilar da antifragilidade é o comportamento empreendedor. “Todo empreendedor começa o negócio com chances negativas, indo contra a probabilidade. É o sujeito que corre riscos em prol do todo, o que é fundamental para a antifragilidade”, explica Luiz Fernando Roxo, CEO da consultoria Zeneconomics e especialista no tema, que apresenta o programa Os antifrágeis com o economista Richard Rytenband, no YouTube. 

A antifragilidade se faz também com diversificação de lideranças, como acrescenta Rytenband, além da existência de redundâncias, clientes múltiplos (para não haver dependência extrema), baixo endividamento (o que reduz a exposição e permite aproveitar oportunidades) e uso reduzido de recursos e pouco desperdício (o conceito de lean da Toyota). 

Há exemplos de antifragilidade made in Brazil, segundo Rytenband, como a Chilli Beans. “Foi a única empresa de óculos que cresceu na crise, utilizando uma estratégia totalmente descentralizada, cortando custos e diversificando a produção”, comenta o economista. Ao sentir a queda no fluxo de grandes shopping centers, a marca apostou em cidades do interior, reduziu a produção de itens premium e apostou em modelos populares. 

Resultado: enquanto o segmento de óculos de sol deve encolher 10% em 2017, a Chilli Beans projeta crescer 7,4%, chegando a uma receita de R$ 650 milhões. “Nossa marca tem um enorme apelo a potenciais franqueados, e a demanda de novas franquias se manteve mesmo nessa época de dificuldades”, afirma seu fundador, Caito Maia. 

UNINDO AS PONTAS

Agilidade e antifragilidade têm em comum os princípios de descentralização, empreendedorismo e muito mais. Na verdade, mesmo não havendo comprovação científica disso, como seria preferível para Taleb, elas são complementares. Confira, nas páginas a seguir, o que sua empresa precisa fazer para ser ágil e antifrágil neste mundo VUCA.

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