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Dossiê HSM

8 min de leitura

A neurociência das experiências totais

O grande volume de dados e a substituição frenética de trends geraram a hiperpersonalização e a algoritmização da experiência do consumidor. Os estudos baseados em recursos da neurociência ajudam as marcas a conhecerem a fundo seus consumidores e a reestabelecerem a conexão genuína

Álvaro Machado Dias e Renato Meirelles

30 de Junho

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Artigo A neurociência das experiências totais

A visão dominante da experiência do consumidor vem mudando desde a virada do milênio. O acesso à internet evoluiu ao ponto de hoje ser praticamente ubíquo. Junto a isso, tivemos a dramática aceleração do processo de sucessão de tendências, propiciada pelas redes sociais. Em conjunto, o impacto do FOMO (sigla em inglês para medo de ser deixado de fora) se multiplicou, o que fez da capacidade de reinvenção continuada uma estratégia de sobrevivência. O volume de informações disponíveis explodiu, tornando imprescindível o uso dos algoritmos de recomendação. O ponto de contato primário com a produção humana passou a ser o browser, o novo alçapão dessa Torre de Babel.

Esse não é apenas um ponto de vista conceitual, é uma verdade empírica sobre o Brasil. No País, 50% das pessoas estão na classe C. Isso significa que esse público tem, proporcionalmente, mais jovens do que a população mais abastada e incluem 56% de pretos e pardos. Dados recentes do Instituto Locomotiva mostram que 90% dessa população está totalmente conectada à internet – taxa próxima às das classes B e A (95%/96%) – e considera que “a internet é a principal forma de contato com os amigos” (81%).

Ou seja, o Brasil é majoritariamente composto por gente que não circula pelos espaços de elite do Leblon e dos Jardins, mas que nem por isso está alienada dos fluxos tecnológicos e de consumo.

Hiperpersonalização, algoritmização e desconexão

O paradigma do momento na confluência entre marketing e TI é a hiperpersonalização que, na prática, significa o atendimento algoritmizado, com fluxos azeitados conectando lojas físicas e marketplaces, CRM e preferências manifestas. A ideia é que o consumidor veja alguma coisa na loja e receba uma oferta digital ou vice-versa. Uma vez no fluxo aquisitivo, é comum que sejam agregados produtos financeiros, especialmente o crédito, já que bancos viraram marketplaces e estes viraram bancos.

Celebrada por muita gente como o pináculo da inovação, a verdade é que essa lógica já foi totalmente incorporada pelo status quo e não mais representa um diferencial competitivo. Pelo contrário, estamos em meio a uma espécie de crise da meia-idade da algoritmização, o que vem fazendo as big techs demitirem às dezenas de milhares. Por seu lado, o consumidor sente falta da criatividade, hoje subjugada pelas técnicas de exibição de ofertas que mimetizaram as lojas de rua como se fossem maquetes de empreendimento imobiliário.

Essa dinâmica impacta especialmente a classe C, cujo potencial de consumo é de R$ 1,9 trilhões e que é altamente bancarizada (mais de 95%, de acordo com os nossos dados), mais adepta ao crédito do que a elite e que demanda renovação mercadológica. Essa mesma classe, em nossas pesquisas, vem reiterando a demanda por formas de comunicação mais inspiradoras, que não sejam meras reproduções empobrecidas das estratégias originalmente desenvolvidas para a elite, mas que tragam valores populares como fartura, colorido e diversidade racial.

Consumo, identidade e marcas

Experiências de consumo são processos de construção de identidade. Elas servem de tubo de ensaio para o encontro com representações de si mesmo, inacessíveis até que aquela roupa seja provada, a família sente-se à mesa do restaurante ou a criança entre na loja de brinquedos. Marcas e produtos são recursos para a geração de alinhamentos inconscientes com ideais de subjetivação que as pessoas projetam nesses artefatos culturais, extraindo disso um senso de individuação. Roupas, celulares, capacetes ou maquiagem são como léxico para a elaboração de cartas de princípios individuais. Milhões delas.

Por isso, o sucesso de uma marca tende a ser reflexo da sua capacidade de otimizar a elaboração dessas declarações de amor ao “eu ideal”, o que apenas é possível quando o conjunto “produtos-marca-empresa” (1) encontra suas metáforas essenciais no espelho do seu público-alvo e (2) alinha processos, tornando-se internamente consistente do ponto de vista desse público.

Não existe experiência do consumidor positiva com conjuntos dissonantes. É preciso atingir o nível da realidade cotidiana, onde, frequentemente, os modelos de sucesso não são CEOs ou top models internacionais, mas influenciadores que habitam ecossistemas que a elite tende a ignorar, seja no mundo offline, seja nas redes sociais.

Um ponto que mapeamos recentemente e que não pode ser desconsiderado é que, quando as indicações tácitas subsomem diálogos de elite, a maior parte do público consumidor brasileiro sente que aquela marca ou produto não é para ele. E passa a ignorá-lo.

O imaginário é estruturado de forma associativa. Na linha dos olhos, uma marca define-se pela rede de relações que se estabelece entre a empresa que lhe dá guarida, a totalidade dos produtos abrigados sob seu guarda-chuva, as experiências aquisitivas, a precificação, a concorrência e aquilo que ela comunica de forma explícita. Sob essa linha, esse conjunto incorpora a sua declaração de princípios subjetivos, que muita gente chama de arquétipo de marca, um termo teoricamente ingênuo. Quando esses princípios não ressoam, os laços afetivos com o consumidor se enfraquecem.

É preciso cuidado com essa desconexão. Como exemplo, a pesquisa Branding Brasil, que estudou a percepção do brasileiro com o País, revelou que 55% dos jovens de 16 a 20 anos deixariam o Brasil por outro país, se pudessem; e segundo o Datafolha, essa taxa seria mais alta ainda – 72%. Também foi revelado que a identificação com símbolos nacionais é baixa. Apenas 62% dos jovens avaliam que a bandeira do Brasil é o maior símbolo nacional, taxa que sobe a 83% entre quem tem mais de 55 anos. Em contraste sutil, 73% acreditam que a cultura nacional é muito rica.

Ainda que comunicação corporativa, branding, marketing, cartela de produtos e precificação sejam assuntos distintos do ponto de vista empresarial, para o consumidor trata-se de uma coisa só, que gera uma experiência inconsciente de caráter integrativo. Essa experiência pode ser menos ou mais genuína, característica daquilo que tem consistência interna e alinhamento com os valores do seu público consumidor. No exemplo acima, isso se traduz em uma brasilidade não óbvia e nem ufanista.

Acertar a mão nessa dimensão é essencial para a sustentabilidade da marca, contribuindo muito para o seu valor de mercado. Marcas internamente consistentes e claramente identificadas com suas metáforas essenciais (que precisam ser aquelas que ressoam junto ao público) tendem a valer mais, dado que seus consumidores tendem a ser mais leais e o mercado mais resiliente aos seus erros de posicionamento ou gestão.

Não se engane, a ideia de que essas coisas são menos importantes nos segmentos de renda média e baixa é completamente errada. A realidade é oposta: o impacto relativamente maior do consumo na renda das famílias faz com que compras tidas como triviais para a elite – um tênis, um vestido ou um adereço – ganhem tremenda conotação identitária. Do mais, como nossos dados mostram, o boca a boca é particularmente importante na classe C, o que significa que as dinâmicas aspiracionais circulam com mais velocidade do que entre as pessoas de maior poder aquisitivo, menos impactadas pelo valor simbólico de bens não duráveis.

Neurociência e valores de marca

Observando esses impactos, qual seria uma abordagem que apoiasse uma percepção, pelo consumidor, de uma marca genuína e consistente com seus valores e metáforas essenciais? Entendemos que passe por uma abordagem que investigue esses aspectos inconscientes e intangíveis.

Por isso, a unidade de neurociências do Instituto Locomotiva desenvolveu um novo assessment do conjunto “empresa-marca-produtos”, o VAM (valores agregados de marca). Ele mapeia aspectos transversais à experiência do consumidor, tanto em termos da empresa e marca, quanto da cartela de produtos, do processo aquisitivo e do pós-venda. Duas virtudes do método são identificar as representações inconscientes evocadas pelo consumidor e as dissonâncias que mais afetam a experiência total e, em especial, o senso do genuíno.

O assessment é estruturado em quatro blocos investigativos, que podem ser resumidos por perguntas singelas: (1) Quais as minhas metáforas essenciais? (2) Qual o pano de fundo mercadológico e inconsciente em que as associações que eu evoco emergem para o meu público-alvo? (3) Quais as diretrizes corporativas, de negócios e comunicação, no interior do meu conjunto “empresa-marca-produtos”? Quão consonantes são essas relações para o meu público-alvo? (4) Como navegar o futuro a partir desse legado, respeitando as aspirações de quem de fato movimenta a empresa/marca? Para responder essas perguntas, análises de dados internos à empresa são combinadas com pesquisas com consumidores/shoppers e experimentos neurocientíficos, nos quais há o uso de diferentes tipos de tecnologia.

As pesquisas são feitas em nossa plataforma gamificada, que evita o aspecto declaratório típico dos Q&A. Já os experimentos são conduzidos em laboratório, onde o clima é descontraído para evitar bloqueios pessoais. E produzimos insights a partir dos dados disponíveis em sites como o Reclame Aqui e redes sociais, usando recursos de inteligência artificial com o processamento de linguagem natural (NLP, na sigla em inglês). Isso tem se provado útil já que esses ambientes concentram críticas e observações sarcásticas difíceis de serem registradas de maneira planejada.

O mapeamento das metáforas essenciais na conexão da marca com o público-alvo emerge de um procedimento que criamos e que dialoga, de maneira remota, com o ZMET (veja ao lado). A avaliação da qualidade das experiências aquisitivas e atributos de qualidade, estética e custo/benefício dos produtos apoia-se na plataforma gamificada de experimentos digitais, que tem rastreamento ocular pela câmera do computador e diversos outros recursos, enquanto os mapeamentos afetivos são feitos usando eletroencefalografia (EEG) e outros registros neurofisiológicos do nosso toolbox.

O diagnóstico leva à parte mais importante de todas, que é a produção de indicações para azeitar a relação entre os diferentes segmentos de consumidores e o conjunto “empresa-marca-produtos”.

A TESE DE QUE PERSONALIZAÇÃO SE RESOLVE COM ALGORITMIZAÇÃO ENTROU EM DECLÍNIO. Falta agora reestabelecer a conexão com os diferentes públicos-alvo, incorporando seus ricos universos metafóricos e sua grande sensibilidade a marcas e tendências. É aí que depositamos a nossa fé.

Leia também: A relação íntima entre dados e experiências

Artigo publicado na HSM Management nº 157.

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Autoria

Álvaro Machado Dias e Renato Meirelles

Álavaro Machado Dias é neurocientista, professor livre-docente da Unifesp e sócio do Instituto Locomotiva. Renato Meirelles é membro do corpo docente do IBMEC, sócio e presidente do Instituto Locomotiva.

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