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Negros, empoderamento e o mercado de trabalho

Ainda que o título seja sugestivo, preciso começar com um alerta. O tema e o texto não devem interessar apenas ao negro e, inclusive, não se resumem ao negro, mas a todo o cidadão brasileiro, pois todos nós somos, direta ou indiretamente, afetados pelos mecanismos de reprodução do racismo.

Raphael Vicente

03 de Junho

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Artigo Negros, empoderamento e o mercado de trabalho

Sim, é uma constatação difícil de absorver, mas você é afetado pelo racismo! Querendo ou não. Mas essa conversa é para um outro dia. 

Você teria uma boa resposta a seguinte pergunta: Como o término da escravidão e os índices atuais de negros em cargo de chefia no mercado de trabalho se relacionam? Uma possível resposta seria que: com o término da escravidão os negros não tiveram acesso ao mercado de trabalho.

Essa resposta é simples, não está errada, mas não nos ajuda muito. E por quê? Por um lado, os negros não tiveram acesso ao mercado de trabalho, mas, por outro, também não tiveram acesso à educação. Então, qual das conclusões estariam corretas? A falta de acesso ao mercado de trabalho ou a educação seria o principal motivo a justificar a baixa representatividade de negros nos cargos de liderança no mercado de trabalho?

Há também outras questões que surgem imediatamente: existia um sistema de ensino que atende a todos, como temos hoje? Como era o mercado de trabalho? Lembrem-se, a abolição da escravatura ocorreu formalmente em 1888, mas seus contornos começam em 1850. 

A ideia dessa conversa realmente não é trazer todas as respostas, mas as perguntas que em regra não nos ocorrem. Não é possível entender claramente a questão racial no Brasil e seus efeitos no mercado de trabalho sem minimamente atentar-se ao seu contexto histórico.

Empoderar-se, palavra largamente utilizada, refere-se a adquirir poder ou mais poder. No caso, libertar-se da narrativa que nos foi imposta, das condições que moldam, constituem e aprisionam o indivíduo, no caso, o indivíduo negro. 

Pausa, nesse ponto a questão ficou intrincada, complexa e até um tanto subjetiva. Acontece quem em regra, em toda nossa vida de estudante, ensino fundamental, médio, etc, nunca nos foram apresentados os complexos sistemas que envolvem o ser humano e o seu comportamento. 

Por exemplo, toda a ideologia racial, ao menos quanto ao negro no Brasil, está baseada em cinco fatores essenciais: cor da pele, formato da boca, nariz, olhos e cabelo. Nada mais. Toda a tragédia humana que decorreu a partir daí, sustentou-se e sustenta-se até hoje, através destes elementos de distinção que determinam a percepção do outro em relação ao negro.

Está amplamente difundido e arraigado no imaginário do brasileiro, negro e não-negro, que o negro é o pobre, o bandido, o preguiçoso, malcheiroso, inapto para cargos de liderança, chefia, direção, entre outros. 

Continuando, em 1999, o Mapa da População Negra no mercado de trabalho, apontou que em São Paulo, apenas 6% dos trabalhadores negros ocupavam postos de trabalho de direção e de planejamento, sendo que nos postos de trabalho de execução está a maioria dos ocupados de etnia negra, sendo 60%.

Hoje, 21 anos depois, o percentual de negros mantém-se o mesmo, dependendo do recorte da análise, até recuou. Mulheres negras, literalmente contam-se nos dedos.  

Vamos nos empoderar, ou seja, entender ou analisar resumidamente o sistema que opera até os nossos dias. 

Uma forma de entendermos o presente é analisar o passado e observarmos como chegamos até aqui. No nosso caso, observar a formação do mercado de trabalho em São Paulo. 

Uma das consequências mais importantes da escravidão, segundo Karl Monsma (2016) e dos seus desdobramentos racistas nas primeiras décadas após a abolição é o que denomina de “mercado de trabalho cindido”.

A sociedade racista admitia o negro como escravo; para o trabalho livre trouxe o europeu, alegando que os negros não tinham mentalidade para se integrarem aos modos de produção modernos. 

Ironicamente o negro perdeu importância ao se transformar em homem livre: não conseguiu a emancipação nem atingiu o estágio de trabalhador engajado nas novas formas de produção que surgiram no país. 

A imigração ganhou força no final da década de 1870, sendo que em 1886, por sugestão do governador da província e com apoio de fundos do Estado, a Sociedade Promotora da imigração, de cunho privado, foi estabelecida para coordenar a campanha de São Paulo para atrair trabalhadores europeus. Em 1895, tais funções foram assumidas pelo Departamento de Agricultura do Estado de São Paulo. 

Quando os imigrantes chegaram, os sociólogos e cientistas brasileiros ocuparam-se com pesquisas e escritos que demonstrassem a eles próprios a ao mundo como o Brasil estava rapidamente se transformando – de um lugar atrasado e miscigenado que parecia mais um canto da África que uma nação do Novo mundo em uma república progressista povoada por europeus e seus descendentes.   

Entretanto, em sua grande maioria os imigrantes europeus que vinham para o Brasil também era analfabeta ou lia muito pouco. 

Na cidade e no campo, os imigrantes desfrutavam da mesma preferência na contratação. O censo de 1893 da Cidade de São Paulo mostrou que 72% dos empregados do comércio, 79% dos trabalhadores das fabricas, 81% dos trabalhadores do setor de transportes e 86% dos artesão eram estrangeiros; o Correio Paulistano estimou que 80% dos trabalhadores do setor de construções eram italianos; e um estudo de 1912 sobre a força de trabalho em 33 indústrias têxteis do Estado  descobriu que 80% dos trabalhadores têxteis eram estrangeiros, a grande maioria italianos.

No começo do século XX, 92% dos trabalhadores industriais na cidade de São Paulo eram estrangeiros, sobretudo de origem italiana. 

Os negros estavam quase que totalmente barrados do trabalho nas fabricas, e os artesão negros desapareceram por completo da cidade. Os negros pobres e pertencentes a classe trabalhadora, encontraram suas oportunidades de trabalho restritas ao sérvio doméstico e ao que hoje poderia ser denominado de setor informal. 

Agora empoderado, talvez tenha ficado um pouco mais claro, na atualidade, a questão racial e o mercado de trabalho e como ele ainda reproduz muito do seu pensamento desde as suas origens. 

Obviamente, além do papel do Estado, a sociedade civil tem um importante papel a desempenhar. 

Um exemplo de intervenção é o movimento o qual coordeno, chamado Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, lançado em 2016,  com o objetivo de engajar um dos maiores agentes de transformação social, ou seja,  o empresariado, o qual, através da redefinição das suas práticas e da sua cultura organizacional, pode protagonizar, com impressionante velocidade, desde que sensível e atento a tais demandas, a promoção do respeito a todas as pessoas, considerando os segmentos da população que se encontra em situação de vulnerabilidade, desigualdade e exclusão, como a população negra.

Por tudo isso, fica evidente que são necessárias ações transversais, multidisciplinares, complexas, no esforço de levar o conhecimento da nossa formação histórica, e, a partir da constatação de erros, redefinir nossas práticas, conceitos, cultura e hábitos, no ambiente corporativo, pessoal e social.

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Autoria

Raphael Vicente

Sócio de Vicente & Vicente Advogados; Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP e Coordenador da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial.

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