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Construção 2.0: a hora das startups

Visto como um setor atrasado no tema da transformação digital, uma nova geração de empresas tenta mudar essa realidade

Heinar Maracy

07 de Outubro

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Artigo Construção 2.0:  a hora das startups

"Que você viva em tempos interessantes", diz a famosa maldição apócrifa atribuída aos chineses. Provavelmente nenhum setor da economia brasileira passa por um momento tão “interessante” quanto o da construção civil. Além de amargar a crise econômica dos últimos tempos, foi também o epicentro da crise política, que paralisou grandes obras de infraestrutura e desestruturou gigantes do setor. Atrasado em sua transformação digital quando comparado a outras indústrias, vê agora a explosão do número de startups querendo catapultar a maneira como construímos moradias dos anos 1950 para o século 21, usando tecnologias como big data, inteligência artificial e impressão 3D. Como se isso fosse pouco, ainda temos uma pandemia estimulando a digitalização de processos e mudando radicalmente o comportamento dos consumidores.

Segundo o relatório “Construção do amanhã – panorama de inovação nos setores imobiliário e de construção no Brasil”, feito pela Deloitte em parceria com o fundo de investimento Terracotta Ventures, apenas 39% das empresas que atuam no setor de construção possuem uma estratégia de inovação definida. Nesse grupo estão incluídas imobiliárias, construtoras, incorporadoras e escritórios de engenharia e arquitetura. Mais de um terço das empresas (36%) não alocam recursos para processos ou iniciativas de inovação, e 75% delas não têm qualquer sistema de recompensa para ideias inovadoras. Das empresas pesquisadas no estudo, somente 22% afirmaram realizar atividades de pesquisa e desenvolvimento.

O atraso do setor não é exclusividade brasileira. Segundo o relatório da McKinsey “Imagining construction’s digital future” (Imaginando o futuro digital da construção, em tradução livre), o setor de construção civil no mundo, apesar de seu tamanho (um mercado de US$ 13 trilhões) é o penúltimo em digitalização, perdendo apenas para caça e agricultura. O estudo ainda destaca que a produtividade do setor conseguiu declinar nas últimas décadas em algumas áreas. “Temos uma indústria conhecida por construir como os egípcios construíram as pirâmides”, diz André Abucham, CEO da Engeform Engenharia (veja gráfico abaixo).

A explosão das construtechs

O resultado dessa resistência à inovação é que o setor está pronto para ser “disruptado”. Segundo o “Mapa das construtechs” elaborado pela Terracotta, fundo vertical especializado em construção, o crescimento das startups da área cresceu 180% nos últimos quatro anos. De 250 startups em atividade em 2016 saltamos para mais de 700.

“Em 2016, o mercado era tão imaturo e conservador que sequer existia o termo construtech”, diz Bruno Loreto, sócio da Terracotta. “Hoje já há uma quantidade significativa de grandes empresas querendo se associar ou apoiar startups. O surgimento de players de tecnologia que saíram do nada e se tornaram unicórnios vem despertando o interesse das corporações, pela oportunidade ou por medo.”

Apesar do grande número de empresas, o setor ainda está engatinhando. Segundo o mapa, 83% das construtechs no País tem até dez funcionários. Seus maiores desafios são obter financiamento e enfrentar a cultura das empresas tradicionais e a burocracia de seus rígidos processos internos.

“A grande dificuldade das startups é que a maior parte das construtoras e incorporadoras ainda está nas mãos de pessoas com uma mentalidade analógica”, diz Karina Lemos, fundadora da Únika, startup que faz vistorias por meio de uma plataforma online. “Eu trabalho com incorporadoras que não têm essa olhar de inovação e até hoje escuto gente perguntando se fazer o relatório à mão não sai mais barato do que no aplicativo. Já perdi concorrências por causa disso.”

Unicórnios à vista

A Terracotta divide o mercado de construtechs em quatro grandes áreas: 1. projetos e viabilidade; 2. ambiente de obra; 3. aquisição; 4. propriedade em uso. Dentro do ecossistema de construtechs, convencionou-se chamar as startups que atuam nesses dois últimos segmentos de proptechs.

Foi no segmento de proptechs que surgiram os dois primeiros unicórnios – startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão – brasileiros, a Quinto Andar e a Loft. A primeira permite a qualquer pessoa alugar imóveis sem precisar de fiador ou pagar seguro-fiança. Ela recebeu uma rodada de investimentos de US$ 250 milhões em 2019, quando chegou à média de 5 mil contratos de aluguel por mês. No fim do ano, começou também a intermediar transações de compra e venda de imóveis.

Já a Loft começou prestando o serviço de corretagem e reforma de imóveis e vem diversificando. Atualmente possui um braço de home equity, onde antecipa de 30% a 50% do valor do imóvel a vendedores e um marketplace de serviços de reforma.

“A grande revolução não vai ser só na forma de construir, mas principalmente no modelo de negócio da construção”, diz Romeo Busarello, diretor de marketing da Tecnisa. “Loft e Quinto Andar fazem o mesmo que uma imobiliária, mas não são iguais a uma Lopes ou uma Fernandez Mera, que têm cabeça de corretagem. São empresas de dados, o negócio se transforma de acordo com o que o mercado demanda. Daqui a cinco anos elas vão ter se transformado tanto que nem vão lembrar mais que eram uma imobiliária.” Para Loreto, o fato de 56% das construtechs estarem no segmento de proptechs é facilmente explicável. “É muito mais simples você fazer um portal de anúncios de imóveis do que inovar no método construtivo, que é normatizado, precisa de aprovações e enfrenta uma série de burocracias e regulamentações.”

Mas já temos cases nacionais de construtechs inovando no canteiro de obras. A candidata mais promissora a ser o terceiro unicórnio do setor é a Tecverde, empresa paranaense que ganhou o noticiário ao construir em parceria com outra startup, a Brasil ao Cubo, um hospital em 40 dias para tratamento de vítimas da Covid-19 em São Paulo. A Tecverde utiliza a tecnologia de wood frame (estrutura de madeira) para erguer casas e edifícios em tempo recorde com baixíssimo impacto ambiental. A Brasil ao Cubo é especializada em construções modulares. Ambas estão sob o guarda-chuva da tecnologia construtiva, que, inspirada nos avanços na indústria automobilística, propõe a industrialização da construção. Casas e edifícios são produzidos em partes nas fábricas, e depois montados no canteiro de obras, com mais eficiência e menos impacto ambiental.

“Estamos em um segmento que não teve necessidade de inovar de forma radical nas últimas décadas, mas, de cinco anos para cá, uma série de fatores contribuíram para que as principais lideranças do setor começassem a puxar esse movimento de inovação”, diz Caio Bonatto, CEO da Tecverde. Para ele, a principal razão que move a inovação é o custo das obras. “Precisamos inovar em diversas frentes para buscar mais eficiência simplesmente porque, se a gente não tornar o setor mais produtivo, não vamos conseguir viabilizar imóveis a preços que o mercado consegue pagar.”

Bonatto compara a indústria automobilística com a da construção. “Dez anos atrás um carro popular custava a mesma coisa que um apartamento popular. Hoje, um apartamento popular custa pelo menos três vezes o preço do carro mais barato que se encontra no Brasil. Isso por conta da baixa produtividade do nosso setor. A indústria automobilística enfrenta a inflação e todos os desafios aqui no Brasil, melhorando seus processos e investindo em tecnologia de projeto, de produto, de novos materiais, engenharia de processo, automatização de fábrica. A indústria da construção civil, não. As melhorias sempre foram muito incrementais.”

O cofundador da Ambar Bruno Balbinot veio do mercado automobilístico e credita o atraso do segmento à sua fragmentação. “É diferente do setor automobilístico, no qual 14 empresas dominam quase totalmente a produção mundial de carros e, por isso, conseguem ser muito mais organizadas e evoluir mais rápido na digitalização.”

Para Enrico Ferrari, diretor estratégico da Brasil ao Cubo, a obra modular pode gerar novos tipos de modelo de negócio na construção. “Hoje eu faço um prédio comercial de oito andares. Se daqui a cinco anos mudar o plano diretor e a área se tornar residencial, eu posso desmontar esse prédio e levar para outro lugar. O modular permite que você mude seu gerenciamento de ativos. Uma rede de franquias pode não precisar mais comprar terrenos. Ela aluga, instala o módulo e se o ponto não der certo ela muda o módulo de lugar. Essa liberdade e essa modelagem de negócio são a grande mudança que o modular vai trazer no Brasil, algo que seria impensável em lugares mais estabilizados como a Europa.”

Radiografia do atraso

Mão de obra barata, alta fragmentação, predominância de empresas familiares sem mindset digital e normatização rígida são alguns fatores elencados para o baixo investimento em inovação na construção. “No nosso setor, se você fizer tudo errado, mesmo assim é capaz da sua empresa dar certo”, diz Busarello. “Eu não vendo um produto, eu vendo um ativo. Quem vende cosméticos, produtos eletroeletrônicos ou sapatos está mais preocupado com o futuro. Mas as empresas de construção não vendem só um lugar para morar, elas vendem um ativo que não envelhece, não tem prazo de validade e que valoriza ano a ano.”

Busarello acredita que, mesmo sem inovar, as empresas tradicionais vão sobreviver. “Elas continuarão sendo pequenas e medíocres, mas o dono continuará ganhando dinheiro.” Para as grandes corporações, a história é diferente. “Elas precisam ter a inovação no DNA ou não sobreviverão. Nenhum investidor vai colocar dinheiro numa empresa old school. Todo mundo quer fazer negócio com empresas com mentalidade do século 21.”

“O setor está atrasado não só na digitalização, mas também em outras vertentes nas quais outros setores já avançaram, como diversidade, inclusão, negócios de impacto, e isso tem a ver com a inovação”, diz Elisa Tawil, fundadora do movimento Mulheres do Imobiliário. “A Accenture tem um dado que mostra que ambientes com mais equidade de gênero são até seis vezes mais inovadores. Para mim, isso é um reflexo direto da falta de diversidade no setor.”

Injetando inovação

Como injetar o DNA da inovação e mudar a cultura de uma empresa que trabalha da mesma maneira desde que foi fundada há 40 anos ou mais? Para a Engeform, a resposta foi a criação de uma incubadora. “A criação do Okara Hub foi o ponto de virada na Engeform”, diz Abucham. “Já estávamos fazendo nosso trabalho de inovação dentro da empresa, mas sentimos a necessidade de ir para fora, de atrair as startups que pudessem se conectar com as dores das empresas do grupo. Decidimos criar um programa de tração e aceleração de startups que começou a operar em 2018.” Nesses dois anos, foram feitas três chamadas de startup ou bets (apostas) baseadas em demandas do grupo. No total, foram impulsionadas mais de 30 startups e iniciados 15 projetos-piloto diretos. “Todas as nossas obras hoje são impactadas por alguma iniciativa de inovação saída do Okara Hub”, diz Rafael Alpire, especialista em inovação e gestão do conhecimento da empresa.

A Tecnisa optou por se relacionar com startups por meio de um sistema de fast dating, em que empreendedores têm a oportunidade de apresentar suas ideias à companhia. “Nosso modelo é o de cliente-anjo. Nós não investimos nem compramos equity. Nós simplesmente damos a oportunidade para a startup emitir uma nota fiscal”, diz Busarello. A empresa promove a iniciativa há dez anos e já viu passar por ela 1,6 mil empresas, resultando em 95 negócios fechados. “Graças a essas startups plugadas em nossos negócios temos o menor CAC (custo de aquisição de cliente) do mercado.”

“O fast dating nos ajuda muito a olhar o futuro. Ele conta o que vai acontecer lá na frente, nos colocando em contato com empresas ainda no early stage que só vão virar negócios estabelecidos daqui a cinco anos. Nosso maior problema é convencer as áreas financeira e jurídica de que elas valem a pena. Acredito que esse é um grande problema das empresas mais tradicionais, elas não dão o acolhimento necessário a essas startups”, complementa Busarello.

A pesquisa da Deloitte/Terracotta questionou os empresários sobre as inovações que eles pretendem implementar em suas empresas, e o destaque foi dado para processos internos, eliminação de gargalos e otimização de processos. “Essa é a primeira onda de inovação e de digitalização que estamos vendo”, diz Loreto. “Acredito muito no BIM, que nos trará a capacidade de embutir no projeto informações que vão ser utilizadas em todas as etapas, de forma digital. O BIM está para a construção como a internet está para o varejo”, diz Balbinot.

A segunda onda deverá focar a inovação no produto final. “O mercado está tentando sair um pouco da mesmice de fazer os mesmos tipos de apartamentos, os mesmos tipos de layouts, os mesmos tipos de prédio. Depois disso eles devem atacar a oferta de serviços, a experiência do cliente e novos modelos de negócio. Essa vai ser a terceira onda.”

Covid-19 e o futuro

Como tem ocorrido em diversos setores econômicos, a pandemia teve inicialmente um efeito negativo, de retração nos investimentos na construção, mas, a partir de maio, o efeito foi contrário, com comportamentos que aceleraram a digitalização. Construtoras começaram a fazer seu processo de venda quase 100% digital, cartórios se adaptaram para aceitar assinatura de escritura de imóvel de forma digital e o consumidor passou a preferir a visita virtual a ter de fazer um périplo por imóveis para achar um que lhe agrade. “Tudo isso já existia, já vinha crescendo em adoção, mas a pandemia alavancou e provavelmente este vai ser o novo padrão do mercado”, diz Loreto.

Em relação ao processo construtivo, o setor prevê que agora deve começar um novo ciclo de expansão, impulsionado por juros baixos e maior participação do capital privado, o que deve impulsionar as novas tecnologias. “Não acho que a construção tradicional vai acabar”, diz Ferrari. “Só vão aumentar as opções e, no futuro, elas vão se complementar.”



Do Brasil para o mundo

Ambar, uma startup global de construção

A Ambar é uma das maiores startups focadas na industrialização de obras do País e também atua na digitalização de construtoras e escritórios de arquitetura e engenharia, usando plataformas BIM para gestão da obra.

Fundada em 2013, a empresa participou da construção de mais de 300 mil imóveis, predominantemente voltados para a população de baixa renda. A empresa tem uma filial nos EUA, onde entrou quase por acaso. “Alguns clientes começaram a empreender no setor imobiliário americano e nos chamaram para dar consultoria em digitalização e industrialização de obras. A demanda foi crescendo, e hoje já estamos comercializando produtos por lá.” Segundo Bruno Balbinot, cofundador da Ambar, a empresa ainda não está se internacionalizando. “Queremos antes fazer a operação no Brasil funcionar muito bem.

O projeto nos EUA é um piloto para aprendermos como o mercado internacional funciona. Não estamos olhando para outros mercados”.

Para Balbinot, a construção nos EUA é tão arcaica como no Brasil. “A principal diferença é que lá a coisa é mais organizada. Incorporadora não constrói, só desenvolve projeto. Aqui os papéis não são tão bem definidos, mas isso também está mudando, principalmente nos grandes centros urbanos.”

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